Pulo do Lobo

Um blog para os apreciadores do silêncio ...

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Localização: Neta, Alentejo, Portugal

quinta-feira, setembro 28, 2006

A escravatura no Brasil


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Os castigos corporais são comuns, permitidos por lei e com a permissão da Igreja.
As Ordenações Filipinas sancionam a morte e mutilação dos negros como também o açoite. Segundo um regimento de 1633 o castigo é realizado por etapas: depois de bem açoitado, o senhor mandará picar o escravo com navalha ou faca que corte bem e dar-lhe com sal, sumo de limão e urina e o meterá alguns dias na corrente, e sendo fêmea, será açoitada à guisa de baioneta dentro de casa com o mesmo açoite. Outros castigos também são utilizados: retalhamento dos fundilhos com faca e cauterização das fendas com cera quente; chicote em tripas de couro duro; a palmatória, uma argola de madeira parecida com uma mão para golpear as mãos dos escravos; o pelourinho, onde se dá o açoite: o escravo fica com as mãos presas ao alto e recebe lombadas de acordo com a infração cometida .

Por que a economia colonial e imperial se baseou no trabalho escravo? O latifúndio monocultor no Brasil exigia uma mão-de-obra permanente. Era inviável a utilização de portugueses assalariados, já que a intenção não era vir para trabalhar, e sim para se enriquecer no Brasil. O sistema capitalista nascente não tinha como pagar salários para milhares de trabalhadores, além do que, a população portuguesa que não chegava aos 3 milhões, era considerada reduzida para oferecer assalariados em grande quantidade. Quem foi utilizado como escravo nos períodos colonial e imperial? Embora o índio tenha sido um elemento importante para formação da colônia, o negro logo o suplantou, sendo sua mão-de-obra considerada a principal base, sobre a qual se desenvolveu a sociedade colonial brasileira. Na fase inicial da lavoura canavieira ainda predominava o trabalho escravo indígena. Parece-nos então que argumentos tão amplamente utilizados, como inaptidão do índio brasileiro ao trabalho agrícola e sua indolência caem por terra. A História verdadeira mostra que a reação do nativo foi tão marcante, que tornou-se uma ameaça perigosa para certas capitanias como Espírito Santo e Maranhão. Além da luta armada, os indígenas reagiram de outras maneiras, ocorrendo fugas, alcoolismo e homicídios como forma de reação à violência estabelecida pelo escravismo colonial. Todas essas formas de reação dificultavam a organização da economia colonial, podendo assim, comprometer os interesses mercantilistas da metrópole, voltados para acumulação de capital. Destaca-se também, a posição dos jesuítas, que voltados para catequese do índio, opunham-se à sua escravidão. Apesar de todos esses obstáculos, o indígena é amplamente escravizado, permanecendo como mão-de-obra básica na economia extrativista do Norte do Brasil, mesmo após o término do período colonial. Por que então que o índio cede lugar para o negro como escravo no Brasil? A maior utilização do negro como mão-de-obra escrava básica na economia colonial, deve-se principalmente ao tráfico negreiro, atividade altamente rentável, tornando-se uma das principais fontes de acumulação de capitais para metrópole. Exatamente o contrário ocorria com a escravidão indígena, já que os lucros com o comércio dos nativos não chegava até a metrópole. Torna-se claro assim, o ponto de vista defendido pelo historiador Fernando Novais, de que "o tráfico explica a escravidão", e não o contrário. Para os portugueses, o tráfico negreiro não era novidade, pois desde meados do século XV , o comércio de escravos era regular em Portugal, sendo que durante o reinado de D. João II o tráfico negreiro foi institucionalizado com a ação direta do Estado português, que cobrava taxas e limitava a participação de particulares. Quanto à procedência étnica do negro, destacaram-se dois grupos importantes: os bantos, capturados na África equatorial e tropical provenientes do Congo, Guiné e Angola, e os sudaneses, vindos da África ocidental, Sudão e norte da Guiné. Interessante observarmos que entre os elementos deste segundo grupo, destacavam-se muitos negros islamizados, responsáveis posteriormente por uma rebelião de escravos ocorrida na Bahia em 1835, conhecida como a Revolta dos Malês. A resistência do negro: os quilombos. Desde fugas isoladas, passando pelo suicídio, pelo banzo (nostalgia que fazia o negro cair em profunda depressão o levando à morte) e pelos quilombos, várias foram as formas de resistência do negro à escravidão, sendo a formação dos quilombos a mais conseqüente. Os quilombos eram aldeamentos de negros que fugiam dos latifúndios, passando a viver comunitariamente. O maior e mais duradouro foi o quilombo dos Palmares, surgido em 1630 em Alagoas, estendendo-se numa área de 27 mil quilômetros quadrados até Pernambuco. Desenvolveu-se através do artesanato e do cultivo do milho, feijão, mandioca, banana e cana-de-açúcar, além do comércio com aldeias vizinhas. Seu primeiro líder foi Ganga Zumba, substituído depois de morto por seu sobrinho Zumbi, que tornou-se a principal liderança da história de Palmares. Zumbi foi covardemente assassinado em 1695 pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, contratado por latifundiários da região. Apesar dos muitos negros mortos em Palmaras, a quantidade de escravos crescia muito e em 1681 atingia a cifra de 1 milhão de negros trazidos somente de Angola. O grande número de negros utilizado como escravos, deixa clara a alta lucratividade do tráfico negreiro, responsável inicialmente pelo abastecimento da lavoura canavieira em expansão nos séculos XVI e XVII e posteriormente nas áreas de mineração e da lavoura cafeeira nos séculos XVIII e XIX respectivamente.

femme fatale


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terça-feira, setembro 26, 2006

Um amor de cao


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Myra atravessou os carris desocupados em direcção ao mar. Cresciam ervas e tojo nas juntas e as traves e ferros estavam negros das marés vivas sujas de crude. O céu estava baixo e muito escuro. Havia estrias roxas e verdes na distância branca e areciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se para engolir a terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver aquele assombro. Se corresse por ali adentro ninguémdaria com ela nunca mais. Assoou-se à baínha da saia e limpou o resto da cara à manga do casaco de malha. Correu com os braços abertos, um sapato em cada mão, em direcção ao bando de gaivotas poisadas. Gritaram muito e revoaram iradas por cima da cabeça dela, mas não a atacaram. A mãe não teria razão, ou seria na terra dela. Outros mares, outros ares. Começou a chover, primeiro gotas grossas, depois fios finos e cerrados. Tudo brilhava. Era como vapor de luz que se levantava daquele grande corpo de água arugir. Myra começou a ficar cega de tanta chuva a bater-lhe na cara e a escorrer pelo pescoço. Era como chorar sem gritos. Correu para o barracão onde brincara de escondidas nesse primeiro Verão em que ainda só falava a língua de brincar com os outros, com os olhos, gestos e risos. Correu depressa, saltitando entre detritos, algas mortas que chiavam, baba de espuma amarela que se abatia na chuva. Estava muito escuro e a água estalava com força atroadora nas chapas de zinco do tecto. Myra fechou a custo o tramelo enferrujado. Doíam-lhe as mãos e os braços de proteger a cabeça da última sova. Ficou na escuridão, até os olhos se habituarem às lâminas de luz das frinchas nas tábuas. Cheirava a salmoura, bafio, peixe estragado, cordame e óleo. Junto às paredes estavam ensarilhados ao alto os paus das barracas, panos de tela desbotada, redes com bóias de vidro, bidons pretos, latas, contentores de plástico esventrados, lixo da praia e do mar. O chão pegava-se aos pés, uma areia imunda e húmida. Com o mundo a desabar por cima da cabeça, Myra sentou-se num molho de corda que lhe picava as nádegas e começou a chorar de aflição; nunca chegaria a casa a tempo de secar antes deles virem, pela noite. Ia apanhar de novo, da ira e do medo. O latido uivado foi a primeira coisa que a alertou. Depois brados, berros e risos trazidos na ventania e abertas nas águas e rebentação, já muito perto. Myra escondeu-se atrás de um bidon, a cara inchada contra o alcatrão, os olhos arregalados de novo terror, a respirar o menos que podia, o coração a bater por todos os lados. Dois rapazes grandes entraram com estrondo a arrastar numa corrente um cão que gania e ladravarouco. Com meio olho, Myra viu o cão a sacudir-se com esforço. O pêlo espirrava água e sangue. Depois atirou-se para o chão e ali ficou. Puxaram-no para um canto com algum cuidado e incentivo, amarraram a corrente e taparam-no com uma manta que sacudiram da água. Disseram-lhe que era um grande cão, o melhor de todos,riram a lembrar a goela aberta do outro a espernear à morte e disseram ao cão que ficasse. Eles logo voltariam, que ele valia mais que o peso em ouro. Ele ficou. Riram-se mais e fecharam o tramelo de fora com toda a força. Ao longe ainda bradavam, rapidamente ao longe, corriam. A chuva abrandou. Pingolejava agora em tampas, fundos de alguidar e latas de zinco. Myra saiu do esconderijo de rojo, devagar. O cão não era dos maiores, mas era grande. Tinha o peito muito ancho e encorpado, o pêlo curto e malhado de branco e camurça.Os olhos eram preto-vivo, muito para cada lado da cabeça achatada e larga. Parou de lamber-se e ficou fito nela, todo quieto e inquieto nas narinas grandes e pretas. Myra reconheceu-lhe a traça, de há tantos anos e tão longe terra: eram os cães de matar cães, o pior cão do mundo. O mais valente, até à demência de morrer de raiva. Atarracado de força, nobre e tão mau. Continuou a aproximar-se de gatas. O animal sem ruído, sem fazer menção de levantar-se, mostrou-lhe as presas. Myra, respeitosa, quebrou o intenso laço do olhar e acocorou-se, os braços entre as pernas, à distância da corrente. O bicho deitou a cabeça entre as patas, desceu as orelhas curtas, uma delas esfacelada, fechou o beiço, uma chaga aberta da orelha até à comissura da grande boca. A luz coada ia esmorecendo. Na meia penumbraMyra deixou-se amolecer, gemeu. O cão voltou a olhá-la e ganiu um ganido de cachorro, um gemido. A omoplata ainda sangrava de outra ferida que brilhavano escuro, um coalho preto que escorria devagar até à ponta da manta. Myra, sem se aproximar deu-lhe o nome que lhe ouvira chamar e começou a falar-lhe de manso na sua língua materna. Desgraçado, desgraçado Rambo, pobrezinho de ti. O animal, sem se mover, esboçou um trejeito de cauda. Deixou de a fitar e recomeçou a lamber-se. Com mil cuidados lentos, Myra tirou do bolso o pão com a salsicha que roubara da lata da casa comum e pô-1o bem perto do nariz do cão, em cima da manta. Toma, come cão, depois arranjamos mais. O cão virou a cabeça de lado para abocanhar do beiço intacto, soergueu o tronco e começou a comer. Myra levantou-se e foi buscar uma tampa de lata com água da chuva.Foi então que Myra pensou que se tinha urinado de medo. As pernas estavam pegajosas, molhadas por dentro. Apalpou-se e viu pela mancha escura nos dedos que era sangue vivo. Havia de ser hoje, a primeira vez, disse sem medo para o cão. Pousou-lhe a água diante. Ele levantou-se e deixou-a chegar-se. Bebeu, a cauda comprida claramente grata. O rabo estava a saber sorrir. Depois começou a lamber-lhe um dos pés nus, o artelho encardido, e Myra pousou-lhe a mão no grande cachaço com muita doçura e determinação. Fomos feitos um para outro, Rambo. Agora temos de fugir antes que eles venham.

M.V. Costa

segunda-feira, setembro 25, 2006

Lúbrica


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Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas !

C. Verde

A vergonha do século


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É triste que os governantes portugueses aceitem pouco mais de 1 milhão de contos pelas mais importantes jóias da coroa portuguesa. O Estado holandês, além do seguro efectuado, tem responsabilidades por não ter "protegido" eficazmente tal tesouro. Será que em Portugal não existem advogados capazes de processar o Estado Holandês em nome de Portugal? Vão-se contentar com uma pequena esmola ? É, muito, muito triste, que o esforço de todo um povo durante centenas de anos ( proveniente do Brasil e materializado nestas jóias da coroa) seja menosprezado por funcionários menores que não ousam arriscar nem quando os mais altos valores da pátria estão em jogo. Falta de classe e de amor à Pátria. Vendilhões!!!

quarta-feira, setembro 20, 2006

Malandro do polícia


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Só agora é que a malta da Neta soube que a GNR aí de Los Angeles te prendeu. Ainda por cima só por causa de uma margherita. Pobres infelizes que nao têm mais nada que fazer senao arreliar a nossa menina. Estamos já a tratar de recolher assinaturas juntamente com um peditório para te tirar dessa choldra pelintra. Beijinhos .

Eu e Ela


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Cobertos de folhagem, na verdura,
O teu braço ao redor do meu pescoço,
O teu fato sem ter um só destroço,
O meu braço apertando-te a cintura;

Num mimoso jardim, ó pomba mansa,
Sobre um banco de mármore assentados.
Na sombra dos arbustos, que abraçados,
Beijarão meigamente a tua trança.

Nós havemos de estar ambos unidos,
Sem gozos sensuais, sem más idéias,
Esquecendo para sempre as nossas ceias,
E a loucura dos vinhos atrevidos.

Nós teremos então sobre os joelhos
Um livro que nos diga muitas cousas
Dos mistérios que estão para além das lousas,
Onde havemos de entrar antes de velhos.

Outras vezes buscando distração,
Leremos bons romances galhofeiros,
Gozaremos assim dias inteiros,
Formando unicamente um coração.

Beatos ou pagãos, vida à paxá,
Nós leremos, aceita este meu voto,
O Flos-Sanctorum místico e devoto
E o laxo Cavalheiro de Flaublas...

C. Verde

terça-feira, setembro 19, 2006

Who's the next ?


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The pope has apologized for the outrage amongst Muslims sparked by his recent comments. But the episode proves once again that criticizing Islam is dangerous.
Twenty years ago in the German city of Bremen, Dutch comedian Rudi Carrell's life depended on police protection. His offense? In a satirical program on German television, he let fly with a lewd joke about the then leader of the Iranian revolution Ayatollah Khomeini. Mass demonstrations in Iran -- orchestrated, no doubt, by the government -- were the result. The threats of violence led to an apology by Carrell, and he never again made a joke about any Muslim -- at least not on television.
In February 1989, the Ayatollah then released a fatwa calling for the murder of Salman Rushdie for his novel "The Satanic Verses." The book, he and other Muslim leaders claimed, was a grave misrepresentation of Islam. Rushdie's Japanese translator lost his life as a result of the fatwa and Rushdie himself went into hiding, though the Iranian leadership distanced itself from the fatwa in 1998. There remain, however, a number of fanatical Muslims who yearn to see Rushdie dead.
Feminist and Islam critic Ayaan Hirsi Ali, the former Dutch parliamentarian who recently left Holland, also lives under threat of murder. In addition to a number of interesting books about the oppression faced by women in the Muslim world, she also wrote the screenplay for the short film "Submission." In one scene, a verse from the Koran -- demanding that women bend to the will of their husbands -- is projected onto a woman's naked body. The film was provocative, and the filmmaker Theo van Gogh paid for it with his life. He was killed on the streets of Amsterdam by a Muslim fanatic.
And then there's Flemming Rose, the Danish editor who a year ago published a series of Muhammad caricatures in his newspaper. Months after they originally appeared, the Muslim world erupted in protest against the drawings. He too must fear for his life.
One thing should be kept in mind, however: The often violent protests that erupted in the Muslim world in the wake of the cartoon controversy have often been manipulated and fuelled by Islamists. The bile currently being flung at the pope is no different.
But the attacks against the pope are especially grotesque. The severe criticism -- often coupled with threats of violence -- directed at the speech held last Tuesday by Benedict XVI is not just an attack on the head of the Catholic Church. The malicious twisting of the pope's words and the absurd allegations made by representatives of Islam represent a frontal attack on open religious and philosophical dialogue.
That so many in the Muslim world joined the protests against the pope merely show just how influential Islamist extremist groups have become. The political goal of the Islamists is clear: any dispute between Christianity and Islam must obey the rules handed down by political Islamism.
Bending to this demand would be a mistake -- indeed it would be tantamount to turning one's back on freedom of expression and opinion. What will come next? Perhaps a complaint that Allah feels insulted by the numerous European women who don bikinis during a summer trip to the beach. It could be anything really -- militant Islamists will always find something. But the response needs to be firm. Freedom of speech, after all, is a vital value and needs to be defended. Any attempt to make political speech hostage to some imagined will of God must be resisted.
There are -- few -- critical voices that should be taken seriously when it comes to the pope's comments. Shouldn't Benedict XVI have known that the quote he included in his speech -- a passage he himself described as "brusque" -- might be misunderstood? Couldn't he have made his meaning a bit clearer? Even if he had, it should be welcomed by all, including leftist atheists and agnostics, that we now have a pope who can pose challenging academic questions. In any case, a close reading of his speech reveals not a single insult directed at a single Muslim.
And there's no reason to respond to every presumed insult. Consider an example from Denmark. Recently, a paper there published a number of rather tasteless Holocaust cartoons which had been shown in Tehran. The reaction of Copenhagen's rabbi was instructive when considered against the bloody response to the Muhammad cartoons -- outrage which ended up costing lives. When asked if he would call for protests, the rabbi merely said: "You know, I've seen worse."

femme fatale


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Estávamos em Setembro e ela posava nua para uma horda de estudantes ainda imberbes, mas já com tiques de artista. Veterana, nao se deixava impressionar por olhares furtivos nem sequer por passes mágicos, fossem eles de simpatia, charme ou simplesmente românticos. Em casa, aguardava-a a sua filha Teresa, com quem iria sair logo que aquela dezena de olhos captassem a volumetria do seu corpo já maduro mas ainda firme e voluptuoso. Era, em parte, devido às "exigências" de sua filha que ainda ali se dirigia para complementar o magro salário auferido como segurança numa firma de transportes de valores. Cem euros por uma sessao de uma hora . Era tanto quanto aquilo que ganhava numa semana de trabalho na sua firma e afinal de contas era um trabalho limpo. Nao fora uma ou outra proposta mais desonesta feito por um ou outro assistente da cadeira e poderia dizer-se que nunca tivera problemas de maior naquela escola. A última das "exigências" da filha impeliu-a a voltar a posar . Precisava daquele dinheiro para comprar umas botas italianas. Agora que começava a debutar, com os seus dezasseis anos, as suas jeans imploravam por umas botas de cano alto de marca. E, Olga, sua mae, nao conseguia deixar de lhes dar razao.

Damiao de Góis


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Simão Rodrigues de Azevedo é homem colérico.
É nesse estado que se abeira da janela de guilhotina numa quente noite de Julho. Em Pádua, 1535. A rua estreita e tortuosa termina no dobrar da esquina da casa onde vive. Abre a janela, sem cuidados especiais e debruça-se.
Distingue à esquerda, um pouco longe, os picos da basílica de Santo António. A noite é de claro luar, afável, bonançosa. Mas nem isso lhe abranda o estado de fúria em que se encontra há cerca de uma hora. Embora jovem, (tem 25 anos), recentemente ordenado sacerdote, o seu temperamento despótico e fanático congestiona-lhe as faces. Não olha para trás. O motivo do seu furor está ali. Dormindo.
"La dotta", como é conhecida a cidade de Pádua, está em completo silêncio. O padre Simão Rodrigues, acalma, pouco a pouco. Tem já organizada, mentalmente, a vingança. Aproxima-se do outro leito, vazio e, sem despir a sotaina, estende-se, disposto a adormecer. Ainda ouve, durante minutos, a respiração levemente ruidosa do companheiro de quarto.
Um pouco mais velho do que Simão Rodrigues (tem 33 anos) o homem adormecido mantem os traços com que Albert Dürer, o famoso pintor alemão, o terá retratado, alguns anos antes. O rosto largo e cheio, a barba loura, os lábios carnudos, bem desenhados, o nariz forte, os olhos que serão azuis e serenos, o corpo jovem, alto, atlético, agora solto e calmo no sono repousado, pertence a um fidalgo português há tempos frequentador da Universidade de Pádua, (provavelmente do curso de Direito ou de Latim) que, a par com a de Bolonha, é das mais doutas e célebres de toda a Europa da época.
Nem parece, pelo seu dormir, que, há menos de uma hora, altercou com Simão Rodrigues. A ele pouco incomodou a discussão, tão habituado vem de conversas do género com alguns dos homens cultos europeus. Por toda a parte, os espíritos mais atentos discutem a questão religiosa depois de Lutero ter espalhado as suas dúvidas, ter sido excomungado e entrar em conflito com as altas autoridades da Igreja.
Para Simão Rodrigues, Lutero é a encarnação do diabo. Mas o jovem adormecido não comunga de tal condenação. Pior do que isso: ele conhece Lutero e Melanchton e frequentou a casa de ambos. Conhece também Erasmo, o humanista que, embora não renegue o catolicismo, é motivo de desconfiança para a Igreja, pela sua tolerância, pela defesa pertinaz do diálogo como forma de entendimento e concórdia.
Simão Rodrigues sabe de tudo isto. Não concebe que o companheiro de quarto aceite e mesmo defenda erros de Lutero como o da recusa do voto de castidade, a negação da confissão auricular, a questão da certeza da graça, a autoridade do Papa, a condenação das indulgências e tudo o mais que esteve na origem da Reforma.
Para o jesuíta Simão Rodrigues aquele homem é um hereje, um luterano convicto. Reconhecer-lhe-á, todavia, mais tarde, sabe-se lá se hipocritamente, que é um homem inteligente, culto, rico, bem relacionado. Mas o fanatismo do padre supera tudo.
Ali, em Pádua, não tem poderes para o denunciar e muito menos para o condenar. Ainda por cima, (coisa que não lhe cabe na compreensão), aquele herético é tido em muita consideração por homens como os cardeais Mardruchio, Bembo e Sadoleto, humanistas católicos que Simão Rodrigues não ousa questionar, tal a sua subalternidade.
Antes de adormecer, o jesuíta ter-se-á reconfortado com o desígnio assumido: um dia virá em que o companheiro de sono daquela noite estival, será responsabilizado pela sua heresia e ele, Simão Rodrigues, será o seu primeiro e mais contumaz acusador.
Vinte e seis anos depois, a vingança consuma-se. E Damião de Góis - é ele que dorme a seu lado - senti-la-á na carne e no espírito, tão dramaticamente que isso o levará à morte.

O COSMOPOLITA

O pequeno João chama com frequência para junto de si, a colaborar nas brincadeiras infantis, o pequeno Damião. O futuro rei, terceiro de nome, não imagina ainda que destino está reservado ao seu pajem. Durante a idade adulta, todavia, o rei terá demonstrações de amizade e reconhecimento para com o futuro historiador, companheiro de infância nos paços do Castelo de Lisboa. Ambos nascem em 1502, Damião em Fevereiro, João em Junho, este na capital, o outro em Alenquer. Filho do almoxarife Rui Dias de Góis e de Isabel de Limi, descendente de Nicolau de Limi, fidalgo flamengo que se estabelecera em Portugal, Damião, aos nove anos, entra para a corte como pajem do rei ou seja, de D. Manuel I, o Venturoso. Que morre em 1521.
O seu jovem camarada é agora D. João III.
Nos paços reais onde também está como guarda-roupa, seu irmão Frutuoso de Góis, Damião é testemunha juvenil do período áureo de D. Manuel e da história portuguesa. Convive com os mais renomados fidalgos, homens de armas e marinheiros. Assiste ao nascimento, (dez anos mais novo), do que virá a ser o Cardeal-Inquisidor e rei, D. Henrique. Ouve e vê nos bastidores a preparação da fabulosa embaixada ao Papa Leão X, a Roma. Moço de câmara, está entre os que velam a agonia de D. Manuel I. Conhece, por certo, Gil Vicente e todos os poetas admitidos na corte, entre eles um, chamado Pedro Andrade Caminha, o feroz inimigo de Camões.
Talvez não saiba, mas alguns ecos lhe terão soado, que Afonso de Albuquerque conquista Goa em 1510 e morre em 1515; que, pela Europa muito se fala de um frade agostinho rebelado contra Roma, de nome Martinho Lutero e da sua excomunhão em 1520; que outro grande vulto da época, Erasmo de Roterdão publica o Elogio da loucura; que Carlos V entra em Espanha; que Inácio de Loiola, ainda fidalgo-guerreiro, é ferido no cerco de Pamplona.
Mas D. João III conhece-lhe as qualidades e deposita nele a maior confiança.
Em 1523, o monarca manda-o para a Flandres como escrivão da Feitoria Portuguesa de Antuérpia, instituição que negoceia as mercadorias vindas do Oriente.
Damião está num dos maiores centros cosmopolitas da Europa, onde, quem seja capaz, facilmente enriquece, material e culturalmente. O que Damião de Góis não enjeita, como homem ávido de saber, como homem atento aos problemas do seu tempo e como homem apreciador dos grandes prazeres da vida.

O "TERRÍVEL" CASO DAS SALMOURAS

Aos seis dias do mês de Maio de 1572, em Lisboa, nos Estaus, na Casa de Despacho da Santa Inquisição está João Carvalho. É provedor das obras do rei e fidalgo da sua casa. Espera que o chamem para depor no processo de Damião de Góis.
Porque, desde 4 de Abril do ano anterior, que o amigo de infância de D. João III está preso no palácio dos Estaus (destruído pelo terramoto de 1755 e sobre cujas ruínas se construirá o actual Teatro D. Maria II).
Os inquisidores ouvem as testemunhas de acusação. João Carvalho, em tempos vizinho de Damião de Góis, é uma delas. Sabe coisas que, em sua opinião, o comprometem. Por exemplo, o ímpio caso das salmouras da Flandres. Que fora assim: na parte dos paços em que ambos habitam fica, por baixo dos aposentos, uma capela. Uma tribuna, sobranceira ao recinto, pertence a Damião. Ali, nem ele nem familiares ou criados seus alguma vez tinham assistido a missas, até porque o espaço servia de depósito de cevada e outros despejos da casa do antigo escrivão da Feitoria. Frequentemente, caem esses despojos, incluindo ratos, na capela. Mais grave: há em casa de Damião uma despensa onde ele guarda toucinhos, carne de porco salgada e salmouras vindas da Flandres. Ora tais alimentos escorrem gorduras que passam o soalho e vão cair precisamente em cima de um crucifixo enorme da capela. Julgou-se, a princípio, que fosse urina. Sabido o facto, foi Damião avisado, mas não se emendara.
João Carvalho, beato, supersticioso e servil há muito que não suporta o historiador. Este é um grande senhor, com vida faustosa e bem visto na corte, ao passo que ele é um modesto fidalgo. O seu depoimento não se limita ao caso dos toucinhos que vem apenas confirmar os outros factos.
Conversava, por vezes, com Damião de Góis e sabia da sua admiração por Lutero e Melanchton por ele próprio lho ter dito, salientando a modéstia e a pobreza em que viviam. Também afirmara o seu grande respeito por um tal Erasmo de Roterdão e ele, João Carvalho, ficara escandalizado com as opiniões de Damião sobre o Purgatório e as ordens de frades. Nunca tinha visto o cronista na missa da capela dos Paços. Iria ele, por vezes, segundo lhe disseram, assistir à cerimónia a São Bento ou a Chelas. Mas os próprios criados de Damião diziam, a quem os quisesse ouvir, que o seu amo "não era homem muito misseiro". Parecia-lhe, igualmente, que o cronista gostava muito de comer e beber bem. Sobretudo quando recebia os estrangeiros que o visitavam. Então, dava banquetes ruidosos em que todos cantavam canções em línguas estranhas. Nessas cantorias, provavelmente, herejes, a voz de Damião de Góis, sobressaía por ser a mais melodiosa.

HÓSPEDE DE ERASMO

O século XVI é uma época em que a descoberta do mundo, então, aberto a todos, releva dos demais acontecimentos. Viaja-se pela Europa, Américas, India e África, contactam-se novos povos, países, hábitos e religiões.
Damião de Góis está entre esses insaciáveis viajantes.
Sediado em Antuérpia, cidade para onde deve ter partido por sugestão sua a D. João III, dada a sua ascendência flamenga, daí inicia os périplos europeus de mais de vinte anos e aí alicerça a sua fortuna pessoal. É agora um cidadão do mundo, fidalgo opulento, generoso, dadivoso, com boa mesa, amigo e admirado por alguns dos maiores vultos da intelectualidade sua contemporânea. Porque, dotado de grande inteligência e curiosidade espiritual, homem de trato cativante, facilmente faz amizades ou simples conhecimentos.
Logo em 1523 visita Friburgo para conhecer Erasmo que lhe vai posteriormente demonstrar amizade e reconhecimento. Além das qualidades próprias, Damião de Góis representa D. João III, rei de um pequeno país que se tornara famoso e poderoso pelas suas recentes descobertas.
E é na função de enviado régio que o futuro cronista de D. Manuel I faz deslocações à Polónia, Dantzig, Lituânia, Cracóvia, Dinamarca, Alemanha para negociar o casamento do infante português D. Luis com Edviges, filha do rei da Polónia.
Na última viagem a este país vai a Witemberg, a cidade da Reforma onde se encontra com Lutero e Melanchton. Ouve a pregação do primeiro na igreja local. Dirá, no processo, pouco ter entendido, além das citações latinas, visto não saber alemão. Mas é convidado pelos dois reformistas para jantar em suas casas, por várias vezes e com eles debater questões de ordem religiosa.
De regresso a Antuérpia, fixa-se em Lovaina. Em 1533, D. João III chama-o a Lisboa e oferece-lhe o lugar de tesoureiro da Casa da India. Recusa-o e pede ao rei que o deixe ir em peregrinação a Santiago de Compostela e lhe permita que continue os seus estudos, principalmente de latim, língua em que virá a escrever os seus primeiros livros. O latim era a língua comum a todos os intelectuais da época, daí a possibilidade das obras serem lidas e conhecidas muito mais rapidamente.
Neste regresso, Damião de Góis fica durante quatro meses como hóspede de Erasmo em Friburgo. As longas conversas com o filósofo humanista - que lhe verbera as relações que mantém com luteranos - jamais serão esquecidas, apesar de não lhe ter sido seguido o conselho. Por fim, em 1535, inscreve-se na Universidade de Pádua, onde conhece, para mal dos seus pecados, o padre Simão Rodrigues de Azevedo.

ZAGA ZABO

Damião de Góis escreve sobre os etíopes e o seu cristianismo. Na corte de D. João III está o bispo abexim Zaga Zabo. Entre os povos pagãos de África, um, o etíope, pratica a religião cristã, afastada, porém, da ordem católica. Respeitam muito ainda o Antigo Testamento, adoptam velhos ritos, inserem regras do judaísmo e do islamismo. Zaga Zabo, humilde e submisso, após viagem difícil, chega à corte, trazendo um desejo de paz e concórdia e pretendendo colocar o seu cristianismo sob a benevolência do Papa. Mas ninguém lhe dá importância, logo se vê metido em intrigas palacianas e desconsiderações. Pode lá um cristianismo em que o clero é casado, os crentes se descalçam para aceder às igrejas, praticam a circuncisão, guardam o Sábado, jejuam até ao pôr do sol, ser aceite na comunidade papal?! Zaga Zabo acha que bem melhor era que se unissem em Deus e em Cristo, arménios, etíopes e todos os que nos rituais não seguem ainda a disciplina católica - todos são abençoados pela água do baptismo. Zaga Zabo lamenta-se até às lágrimas por o não deixarem comungar e o ameaçarem de excomunhão.
Damião de Góis, no mais completo espírito erasmiano de tolerância, toma a sua defesa e pede ao Papa que receba o bispo de pele negra, o trate com generosidade e lhe permita a aproximação desejada a Roma.
O cardeal-infante D. Henrique que, até certa altura, o cumula de honrarias, não vai gostar nada deste livro damiano e proíbe que circule. D. Henrique é, também, o Inquisidor-Geral do reino.

O REGRESSO

Vindo de Pádua, Damião de Góis em 1539, casa em Lovaina, com Joana van Hargen, filha de um conselheiro flamengo do Imperador Carlos V, o que acrescenta a sua fortuna de homem de negócios que sempre foi, a par das actividades diplomáticas e culturais.
Em 1542, a cidade de Lovaina é invadida pelas tropas francesas de Francisco I. Damião de Góis está, de mão armada, entre os que combatem os sitiantes, não sem que, constantemente, pretenda encontrar formas de entendimento com os atacantes. Mas é feito prisioneiro. Por interferência de D. João III e do imperador é libertado, mediante o pagamento de um avultado resgate. Carlos V confere-lhe o direito a brasão e armas que o rei português confirma. Este momento da sua vida é motivo para grandes elogios por parte de poetas e filósofos flamengos.
Passaram vinte e dois anos desde a sua saída de Portugal. Exerceu os mais altos cargos em nome do seu país, é estimado e admirado em várias cortes europeias, louvam-no cardeais, escritores, teólogos, políticos, reformistas e humanistas, constituiu uma família feliz com Joana de quem já tem filhos…

AS TRÊS DENÚNCIAS DO JESUITA

Em Setembro desse mesmo ano, estando em Évora, Simão Rodrigues, então provincial da Companhia de Jesus em Portugal, dirige-se, de imediato, à Inquisição da cidade. Vai para delatar Damião de Góis, há pouco regressado ao país. E diz que vivendo ambos em Pádua, ouviu o futuro autor da Crónica de D. Manuel dizer coisas que, quanto a ele, declarante, eram heréticas, como o louvar as doutrinas de Lutero e ter em grande consideração tal pessoa. É de opinião que Damião de Góis neste seu regresso pode "fazer muito dano acerca das coisas da nossa Santa fé católica, porque é homem avisado e sabe, além do latim, alguma coisa de Teologia e sabe a fala francesa e a italiana e a flamenga e a alemã pois andou muito tempo entre eles". Disse ainda que Damião era grande amigo de Simão Grineus, um hereje da maior reputação entre os luteranos e também que falara com Lutero e fora discipulo de Erasmo. Ele e um tal frei Roque, convertido ao protestantismo, sempre o ridicularizavam quando ele, declarante, defendia a Igreja Católica. Perguntado se alguém ouvira tais conversas afirmou que não se lembrava.
Dois dias depois, Simão Rodrigues está de novo na Inquisição para acrescentar ter-se recordado de uma discussão, durante a qual o frade e Damião de Góis defendiam que a quebra do voto de castidade, por parte dos frades, não os impedia continuarem religiosos. Não tem dúvidas: eram ambos, o frade e Damião, luteranos e procuraram induzi-lo a converter-se a tal seita. E volta a não se recordar de mais nada, prometendo que, mal se lembre, logo virá contar aos inquisidores.
Durante cinco anos não tiveram andamento as denúncias. Simão Rodrigues de Azevedo não é homem para desistir, porém.
Em Setembro de 1550, desta vez em Lisboa, ei-lo na Inquisição. Confirma tudo o que declarara em Évora e acrescenta ter-se lembrado de, em certo dia defeso da Igreja, os dois acusados tentaram-no para que comesse queijos frescos e carne, a que se recusou, mas viu que ambos o faziam. Lembrava-se também de ter discutido com Damião de Góis a certeza da graça e que ele, ao contrário do que afirma S. Paulo, dissera que todos os homens podiam estar certos de que viviam sempre na graça de Deus.
Cerca de vinte e seis anos vão passar sobre estas denúncias. Só em Abril de 1571, Damião de Góis é preso.

O HISTORIADOR

Estranho caso! Apesar da alta posição de Simão Rodrigues, "testemunha legalíssima e sem nada que se lhe possa apontar", os Inquisidores não dão andamento à acusação durante mais de duas décadas. Porquê? Pode supor-se: D. João III é amigo íntimo de Damião, o Cardeal D. Henrique, idem, as acusações não têm testemunhas. Mas, sobretudo, porque Damião de Góis não é um fidalgote qualquer. O seu prestígio, por toda a Europa, mesmo entre luteranos e católicos de nomeada, impede se ouse levar adiante uma queixa que, não admiraria, iria terminar em auto-de-fé.
As altas autoridades da Nação, como ainda há menos de trinta anos se chamava aos detentores do poder, também em quinhentos não querem desafiar as nações amigas.
O assunto morre.
Damião de Góis prossegue a sua vida de grande senhor em Portugal e os anos seguintes vão afirmá-lo como um dos maiores historiadores portugueses. Mas o intenso labor a que se dedica nesse intervalo de vinte e seis anos, custar-lhe-á caro.
No entanto, Simão Rodrigues obtém uma pequena vitória. D. João III convidara, logo em 1545, Damião de Góis para mestre e preceptor do infante D. João, futuro pai de D. Sebastião. Simão sabe-o. Mais uma razão para o denunciar em Évora. Os jesuítas querem assenhorear-se da educação do príncipe. Damião é afastado do cargo.
D. João III convida-o, novamente. Desta feita, em 1548, para guarda-mor da Torre do Tombo.
É nesta altura que o "luterano" se muda para Lisboa. Oportunidade para na capital, donde gere também os seus négocios de comerciante com as principais cidades europeias, escandalizar certas pessoas. De facto, o historiador não resguarda a vida ostentosa e desafogada que leva, a tal ponto que vai à missa com um lacaio, pajens e um escravo que lhe carrega uma cadeira.
No cargo de guarda-mor, Damião de Góis aperfeiçoa, em contacto com os documentos, o seu ofício de historiógrafo. Não espanta, pois, que, em 1558, um ano após a morte de D. João III, o Cardeal D. Henrique, então regente do reino, o incumba de escrever a Crónica de D. Manuel. Opção inteiramente certa a do Inquisidor-Geral. Quem melhor do que Damião poderia elaborar a crónica de um rei em cuja corte vivera e a cuja morte assistira?
Trabalha duramente na redacção do texto. De tal modo que, alguns amigos estrangeiros, seus conhecidos, dirão ter ele envelhecido, enormemente, nesse período.
Em 1566, saem em português a 1ª e a 2ª parte da Crónica de D. Manuel. E, no ano seguinte, as duas partes restantes e a Crónica do Principe D. João.
Mal adivinha Damião de Góis que essa publicação lhe trará o regresso das denúncias do padre Simão Rodrigues.

OUTRA VEZ A CARNE

Luís de Castro, fidalgo da casa do Cardeal D. Henrique e seu tesoureiro, vem ao processo testemunhar ter ouvido Damião de Góis afirmar que houve muitos Papas que foram tiranos e que daí viera muito mal à Igreja, que muitos dos maiores eclesiásticos eram hipócritas e tiranos, mais do que os próprios leigos. Damião também lhe dissera que os padres da Companhia de Jesus não guardavam a pobreza instituida pelo fundador. E outras pequenas coisas mais.
Luís de Castro é genro de Damião de Góis e pleiteia na altura, com o filho do historiador, por causa das partilhas dos bens de Joana van Hargen, entretanto falecida.
D. Briolanja, andando prenha, em certo dia foi jantar a casa de Damião de Góis e, devido ao seu estado, lhe veio o desejo de comer carne e ele, Damião, pôs na mesa entrecosto de porco e linguiça. Espantou-se ela, assim o confessa no processo, que o historiador e a mulher também comessem pois era dia proibido pela Igreja de se comer carne. E ele lhe disse: "o que vai para dentro não causa nojo, só o que vem para fora".
D. Briolanja é sobrinha de Damião de Góis.
Outras testemunhas, entre elas o poeta Pedro Andrade Caminha, deporão. A maior parte acusa-o de ninharias e não ousa levá-las muito a fundo, antes pelo contrário, asseguram que, no mais, "nunca lhe viram fazer ou dizer coisa de mau cristão".
Mas Damião de Góis jaz na prisão desde Abril de 1571. Sem saber de que o acusam. Tem 69 anos, sente-se muito velho e alquebrado, tão cheio de feridas e sarna "por todo o corpo que me falta pouco para me julgarem leproso e quase não tenho já forças para me suster sobre as pernas". Está no silêncio, na incomunicabilidade: "peço-lhes que me mandem emprestar um livro em latim para ler, qual lhes parecer, porque estou apodrecendo de ociosidade e com ler se me passam muitos pensamentos".
Até que o chamam para as primeiras perguntas.
Damião de Góis não é um herói, não tem vocação de mártir.
Durante meses vai desfiar a sua vida perante os inquisidores, jurando pelos Santos Evangelhos dizer a verdade.

SIMÃO RODRIGUES VENCE

Assim que a 1ª e a 2ª partes da Crónica de D. Manuel vieram a público Damião de Góis foi fulminado. Homem do Renascimento, rigoroso na análise, embora habituado ao convívio hipócrita com os grandes, o historiador escolheu o caminho da verdade e da justiça. Não bajulou ninguém, não fez elogios por cálculo, não se amedrontou ao escrever os factos (alguns consideram Damião de Góis o primeiro repórter da nossa historiografia). Foi avaro a encomiar o Cardeal D. Henrique - e como este gostava de ser incensado! Atreveu-se a criticar a poderosa Casa de Bragança não dando relevo aos seus membros, ousou voltar à tolerância para com os cristãos etíopes. O que lhe interessava era a verdade, doesse a quem doesse. Mesmo que fosse a sua verdade. E se, quanto a estilo e emoção, fica muito longe de Fernão Lopes, a postura moral é idêntica e daí a sua importância.
Os Braganças caem-lhe em cima, os clérigos, o Cardeal. Nas edições seguintes truncam-lhe a Crónica, censurando-a, alterando-a, adulterando-a.
Damião de Góis perdeu o estado de graça em que até aí vivera na corte. Há muitos anos que está em Portugal. De certa maneira, esquecido lá fora. Os seus amigos foram morrendo ou mudando. O ninho de vespas pode morder--lhe. É um personagem sem risco: agora, vão atacá-lo.
Tudo leva a crer que é a mão daquele que o protegera a que se levanta para o acusar. De quê? As "ofensas" da sua Crónica não o implicavam com a Inquisição. A teia adensa-se: Braganças, os familiares, o Cardeal despeitado trarão para aliados os jesuítas. Quem se lembraria das acusações de Simão Rodrigues de 1545 e 1550? Só D. Henrique - escreveria qualquer autor policial de mediana craveira.
Luís de Castro, agastado com o sogro, terá sido, a mando do Cardeal (recordemos: era seu tesoureiro) o desencadeador da prisão de Damião de Góis e do processo contra ele. Do qual constam, à cabeça, os traslados das denúncias de Simão Rodrigues
Processo que o Inquisidor-Geral, desta vez, ordena que vá em frente.
Já se disse: Damião de Góis está velho, cansado e doente. Pede, insistentemente, aos inquisidores que acelerem as audições, dele e das testemunhas. Narra a sua vida no estrangeiro, os conhecimentos que travou, com Lutero, com Melanchton, com Erasmo. Acrescenta sempre que sempre criticara os dois primeiros. Terá dito algumas frases que foram mal compreendidas. Nunca se desviou da fé católica, nunca fez ou disse nada contra ela.
Mas tudo isso são pecados da sua juventude. Pede que lhos relevem, como tal. Apresenta testemunhas que o abonam como fervoroso católico, que revelam as muitas dádivas piedosas que fez a igrejas e capelas, lembra os serviços que prestou a Portugal e ao rei D. João III.
Os inquisidores lêem-lhe a sentença: é condenado a cárcere penitencial perpétuo. Aceitam-lhe a abjuração:
"Damião de Goes, cristão-velho, morador nesta cidade de Lisboa, perante vós, Reverendos Senhores Inquisidores, contra a herética pravidade e apostasia, juro nestes Santos Evangelhos, em que tenho minhas mãos, que, de minha própria e livre vontade, anatematizo e aparto de mim toda a espécie de heresia e apostasia que for ou se levantar contra a santa fé católica e Sé Apostólica, especialmente estas em que caí, que tenho confessado ante Vossas Mercês, que aqui agora, em minha sentença, me foram lidas, as quais aqui hei por repetidas e declaradas. E juro de sempre ter e guardar a santa fé católica que tem e ensina a Santa Madre Igreja de Roma e que serei sempre obediente ao nosso mui Santo Padre Papa Gregório décimo terceiro, ora presidente na Igreja de Deus, e a seus sucessores. E confesso que todos os que contra esta fé católica vierem são dignos de condenação."
Livra-se Damião de Góis de arder na fogueira. Mas a sentença é reveladora: mesmo o cárcere perpétuo é pena forte, o que talvez prove que os inquisidores lhe aceitaram a abjuração, embora convencidos de que era (ou fora) partidário do luteranismo.

QUEM MATOU?

Mandam-no a cumprir a pena para o Mosteiro da Batalha.
Aliviam-lha, porém, é o que parece, porque, a 30 de Janeiro de 1574 encontram-no caído sobre a lareira de sua casa, em Alenquer, morto, parcialmente calcinado. (Outros dirão que a morte se deu, dessa maneira, mas numa albergaria, ao transportarem-no para o mosteiro de Alcobaça).
Quando, em 1941, se fez a trasladação dos seus restos mortais para a Igreja de S. Pedro, em Alenquer, Mário de Sampaio Ribeiro, estudioso musical (Damião de Góis foi compositor), viu-lhe o crânio. Notava-se uma violenta pancada arredondada, improvável que fosse provocada por qualquer aresta, ao cair sobre a lareira.
Alguém o assassinara.

quinta-feira, setembro 07, 2006

femme fatale


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Já era tempo de regressarmos ao seu convívio. As mulheres fatais desde sempre pertenceram ao imaginário delirante do blog pulo do lobo. A sua presença suaviza-nos as têmporas e solta-nos a língua sibilina. Prometo que as tratei amiúde ao nosso regato.

Zé da Neta

Maria


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A malta cá da Neta está toda a torcer por ti. Se ganhares vamos convidar-te para conheceres o pulo do lobo ... à tardinha !!

Força Maria

A Carta


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Senhor:

Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer.Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo:A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome - o Monte Pascoal e à terra - a Terra da Vera Cruz.Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimosem direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dezhoras pouco mais ou menos.Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si.E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barretevermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramalgrande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimentoduma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiçoe as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeramsinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora.Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças - ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho oupor qualquer coisa que homem lhes queria dar.Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos deazulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, esuas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se.À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite.Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique,em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. Ealguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que aí tinham -- as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele.Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não.Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra.Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quaisvinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem.E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam doishomens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar.E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado.Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos.Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suassetas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos.A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio.Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele.Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.Também andava aí outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum.Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nósquantas coisas que lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia.Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa,mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado.Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e elesfolgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cimae sai a água por muitos lugares.E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém.Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram - do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que nãopode mais ser.Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhuma casa ou maneira delas.Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes - disse ele - que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho.E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que elesandavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas.Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos.E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite.Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tardefizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse.E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus.À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.Era já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maioresque as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que - eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar.À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos.Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.E assim não houve mais este dia que para escrever seja.À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta paracima. E vinha tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis.Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles.Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água.Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bonsrostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso,em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixodo rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão.Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinqüenta ou mais.Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissessealguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção.Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho comcrucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada um a sua ao pescoço. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.Isto acabado - era já bem uma hora depois do meio-dia - viemos às naus a comer, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, quetodos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram.Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora osachávamos como os de lá.Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro - o que dáEla receberei em muita mercê.Beijo as mãos de Vossa Alteza.Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha

C' est vrai


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