Pulo do Lobo

Um blog para os apreciadores do silêncio ...

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Localização: Neta, Alentejo, Portugal

terça-feira, setembro 19, 2006

Damiao de Góis


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Simão Rodrigues de Azevedo é homem colérico.
É nesse estado que se abeira da janela de guilhotina numa quente noite de Julho. Em Pádua, 1535. A rua estreita e tortuosa termina no dobrar da esquina da casa onde vive. Abre a janela, sem cuidados especiais e debruça-se.
Distingue à esquerda, um pouco longe, os picos da basílica de Santo António. A noite é de claro luar, afável, bonançosa. Mas nem isso lhe abranda o estado de fúria em que se encontra há cerca de uma hora. Embora jovem, (tem 25 anos), recentemente ordenado sacerdote, o seu temperamento despótico e fanático congestiona-lhe as faces. Não olha para trás. O motivo do seu furor está ali. Dormindo.
"La dotta", como é conhecida a cidade de Pádua, está em completo silêncio. O padre Simão Rodrigues, acalma, pouco a pouco. Tem já organizada, mentalmente, a vingança. Aproxima-se do outro leito, vazio e, sem despir a sotaina, estende-se, disposto a adormecer. Ainda ouve, durante minutos, a respiração levemente ruidosa do companheiro de quarto.
Um pouco mais velho do que Simão Rodrigues (tem 33 anos) o homem adormecido mantem os traços com que Albert Dürer, o famoso pintor alemão, o terá retratado, alguns anos antes. O rosto largo e cheio, a barba loura, os lábios carnudos, bem desenhados, o nariz forte, os olhos que serão azuis e serenos, o corpo jovem, alto, atlético, agora solto e calmo no sono repousado, pertence a um fidalgo português há tempos frequentador da Universidade de Pádua, (provavelmente do curso de Direito ou de Latim) que, a par com a de Bolonha, é das mais doutas e célebres de toda a Europa da época.
Nem parece, pelo seu dormir, que, há menos de uma hora, altercou com Simão Rodrigues. A ele pouco incomodou a discussão, tão habituado vem de conversas do género com alguns dos homens cultos europeus. Por toda a parte, os espíritos mais atentos discutem a questão religiosa depois de Lutero ter espalhado as suas dúvidas, ter sido excomungado e entrar em conflito com as altas autoridades da Igreja.
Para Simão Rodrigues, Lutero é a encarnação do diabo. Mas o jovem adormecido não comunga de tal condenação. Pior do que isso: ele conhece Lutero e Melanchton e frequentou a casa de ambos. Conhece também Erasmo, o humanista que, embora não renegue o catolicismo, é motivo de desconfiança para a Igreja, pela sua tolerância, pela defesa pertinaz do diálogo como forma de entendimento e concórdia.
Simão Rodrigues sabe de tudo isto. Não concebe que o companheiro de quarto aceite e mesmo defenda erros de Lutero como o da recusa do voto de castidade, a negação da confissão auricular, a questão da certeza da graça, a autoridade do Papa, a condenação das indulgências e tudo o mais que esteve na origem da Reforma.
Para o jesuíta Simão Rodrigues aquele homem é um hereje, um luterano convicto. Reconhecer-lhe-á, todavia, mais tarde, sabe-se lá se hipocritamente, que é um homem inteligente, culto, rico, bem relacionado. Mas o fanatismo do padre supera tudo.
Ali, em Pádua, não tem poderes para o denunciar e muito menos para o condenar. Ainda por cima, (coisa que não lhe cabe na compreensão), aquele herético é tido em muita consideração por homens como os cardeais Mardruchio, Bembo e Sadoleto, humanistas católicos que Simão Rodrigues não ousa questionar, tal a sua subalternidade.
Antes de adormecer, o jesuíta ter-se-á reconfortado com o desígnio assumido: um dia virá em que o companheiro de sono daquela noite estival, será responsabilizado pela sua heresia e ele, Simão Rodrigues, será o seu primeiro e mais contumaz acusador.
Vinte e seis anos depois, a vingança consuma-se. E Damião de Góis - é ele que dorme a seu lado - senti-la-á na carne e no espírito, tão dramaticamente que isso o levará à morte.

O COSMOPOLITA

O pequeno João chama com frequência para junto de si, a colaborar nas brincadeiras infantis, o pequeno Damião. O futuro rei, terceiro de nome, não imagina ainda que destino está reservado ao seu pajem. Durante a idade adulta, todavia, o rei terá demonstrações de amizade e reconhecimento para com o futuro historiador, companheiro de infância nos paços do Castelo de Lisboa. Ambos nascem em 1502, Damião em Fevereiro, João em Junho, este na capital, o outro em Alenquer. Filho do almoxarife Rui Dias de Góis e de Isabel de Limi, descendente de Nicolau de Limi, fidalgo flamengo que se estabelecera em Portugal, Damião, aos nove anos, entra para a corte como pajem do rei ou seja, de D. Manuel I, o Venturoso. Que morre em 1521.
O seu jovem camarada é agora D. João III.
Nos paços reais onde também está como guarda-roupa, seu irmão Frutuoso de Góis, Damião é testemunha juvenil do período áureo de D. Manuel e da história portuguesa. Convive com os mais renomados fidalgos, homens de armas e marinheiros. Assiste ao nascimento, (dez anos mais novo), do que virá a ser o Cardeal-Inquisidor e rei, D. Henrique. Ouve e vê nos bastidores a preparação da fabulosa embaixada ao Papa Leão X, a Roma. Moço de câmara, está entre os que velam a agonia de D. Manuel I. Conhece, por certo, Gil Vicente e todos os poetas admitidos na corte, entre eles um, chamado Pedro Andrade Caminha, o feroz inimigo de Camões.
Talvez não saiba, mas alguns ecos lhe terão soado, que Afonso de Albuquerque conquista Goa em 1510 e morre em 1515; que, pela Europa muito se fala de um frade agostinho rebelado contra Roma, de nome Martinho Lutero e da sua excomunhão em 1520; que outro grande vulto da época, Erasmo de Roterdão publica o Elogio da loucura; que Carlos V entra em Espanha; que Inácio de Loiola, ainda fidalgo-guerreiro, é ferido no cerco de Pamplona.
Mas D. João III conhece-lhe as qualidades e deposita nele a maior confiança.
Em 1523, o monarca manda-o para a Flandres como escrivão da Feitoria Portuguesa de Antuérpia, instituição que negoceia as mercadorias vindas do Oriente.
Damião está num dos maiores centros cosmopolitas da Europa, onde, quem seja capaz, facilmente enriquece, material e culturalmente. O que Damião de Góis não enjeita, como homem ávido de saber, como homem atento aos problemas do seu tempo e como homem apreciador dos grandes prazeres da vida.

O "TERRÍVEL" CASO DAS SALMOURAS

Aos seis dias do mês de Maio de 1572, em Lisboa, nos Estaus, na Casa de Despacho da Santa Inquisição está João Carvalho. É provedor das obras do rei e fidalgo da sua casa. Espera que o chamem para depor no processo de Damião de Góis.
Porque, desde 4 de Abril do ano anterior, que o amigo de infância de D. João III está preso no palácio dos Estaus (destruído pelo terramoto de 1755 e sobre cujas ruínas se construirá o actual Teatro D. Maria II).
Os inquisidores ouvem as testemunhas de acusação. João Carvalho, em tempos vizinho de Damião de Góis, é uma delas. Sabe coisas que, em sua opinião, o comprometem. Por exemplo, o ímpio caso das salmouras da Flandres. Que fora assim: na parte dos paços em que ambos habitam fica, por baixo dos aposentos, uma capela. Uma tribuna, sobranceira ao recinto, pertence a Damião. Ali, nem ele nem familiares ou criados seus alguma vez tinham assistido a missas, até porque o espaço servia de depósito de cevada e outros despejos da casa do antigo escrivão da Feitoria. Frequentemente, caem esses despojos, incluindo ratos, na capela. Mais grave: há em casa de Damião uma despensa onde ele guarda toucinhos, carne de porco salgada e salmouras vindas da Flandres. Ora tais alimentos escorrem gorduras que passam o soalho e vão cair precisamente em cima de um crucifixo enorme da capela. Julgou-se, a princípio, que fosse urina. Sabido o facto, foi Damião avisado, mas não se emendara.
João Carvalho, beato, supersticioso e servil há muito que não suporta o historiador. Este é um grande senhor, com vida faustosa e bem visto na corte, ao passo que ele é um modesto fidalgo. O seu depoimento não se limita ao caso dos toucinhos que vem apenas confirmar os outros factos.
Conversava, por vezes, com Damião de Góis e sabia da sua admiração por Lutero e Melanchton por ele próprio lho ter dito, salientando a modéstia e a pobreza em que viviam. Também afirmara o seu grande respeito por um tal Erasmo de Roterdão e ele, João Carvalho, ficara escandalizado com as opiniões de Damião sobre o Purgatório e as ordens de frades. Nunca tinha visto o cronista na missa da capela dos Paços. Iria ele, por vezes, segundo lhe disseram, assistir à cerimónia a São Bento ou a Chelas. Mas os próprios criados de Damião diziam, a quem os quisesse ouvir, que o seu amo "não era homem muito misseiro". Parecia-lhe, igualmente, que o cronista gostava muito de comer e beber bem. Sobretudo quando recebia os estrangeiros que o visitavam. Então, dava banquetes ruidosos em que todos cantavam canções em línguas estranhas. Nessas cantorias, provavelmente, herejes, a voz de Damião de Góis, sobressaía por ser a mais melodiosa.

HÓSPEDE DE ERASMO

O século XVI é uma época em que a descoberta do mundo, então, aberto a todos, releva dos demais acontecimentos. Viaja-se pela Europa, Américas, India e África, contactam-se novos povos, países, hábitos e religiões.
Damião de Góis está entre esses insaciáveis viajantes.
Sediado em Antuérpia, cidade para onde deve ter partido por sugestão sua a D. João III, dada a sua ascendência flamenga, daí inicia os périplos europeus de mais de vinte anos e aí alicerça a sua fortuna pessoal. É agora um cidadão do mundo, fidalgo opulento, generoso, dadivoso, com boa mesa, amigo e admirado por alguns dos maiores vultos da intelectualidade sua contemporânea. Porque, dotado de grande inteligência e curiosidade espiritual, homem de trato cativante, facilmente faz amizades ou simples conhecimentos.
Logo em 1523 visita Friburgo para conhecer Erasmo que lhe vai posteriormente demonstrar amizade e reconhecimento. Além das qualidades próprias, Damião de Góis representa D. João III, rei de um pequeno país que se tornara famoso e poderoso pelas suas recentes descobertas.
E é na função de enviado régio que o futuro cronista de D. Manuel I faz deslocações à Polónia, Dantzig, Lituânia, Cracóvia, Dinamarca, Alemanha para negociar o casamento do infante português D. Luis com Edviges, filha do rei da Polónia.
Na última viagem a este país vai a Witemberg, a cidade da Reforma onde se encontra com Lutero e Melanchton. Ouve a pregação do primeiro na igreja local. Dirá, no processo, pouco ter entendido, além das citações latinas, visto não saber alemão. Mas é convidado pelos dois reformistas para jantar em suas casas, por várias vezes e com eles debater questões de ordem religiosa.
De regresso a Antuérpia, fixa-se em Lovaina. Em 1533, D. João III chama-o a Lisboa e oferece-lhe o lugar de tesoureiro da Casa da India. Recusa-o e pede ao rei que o deixe ir em peregrinação a Santiago de Compostela e lhe permita que continue os seus estudos, principalmente de latim, língua em que virá a escrever os seus primeiros livros. O latim era a língua comum a todos os intelectuais da época, daí a possibilidade das obras serem lidas e conhecidas muito mais rapidamente.
Neste regresso, Damião de Góis fica durante quatro meses como hóspede de Erasmo em Friburgo. As longas conversas com o filósofo humanista - que lhe verbera as relações que mantém com luteranos - jamais serão esquecidas, apesar de não lhe ter sido seguido o conselho. Por fim, em 1535, inscreve-se na Universidade de Pádua, onde conhece, para mal dos seus pecados, o padre Simão Rodrigues de Azevedo.

ZAGA ZABO

Damião de Góis escreve sobre os etíopes e o seu cristianismo. Na corte de D. João III está o bispo abexim Zaga Zabo. Entre os povos pagãos de África, um, o etíope, pratica a religião cristã, afastada, porém, da ordem católica. Respeitam muito ainda o Antigo Testamento, adoptam velhos ritos, inserem regras do judaísmo e do islamismo. Zaga Zabo, humilde e submisso, após viagem difícil, chega à corte, trazendo um desejo de paz e concórdia e pretendendo colocar o seu cristianismo sob a benevolência do Papa. Mas ninguém lhe dá importância, logo se vê metido em intrigas palacianas e desconsiderações. Pode lá um cristianismo em que o clero é casado, os crentes se descalçam para aceder às igrejas, praticam a circuncisão, guardam o Sábado, jejuam até ao pôr do sol, ser aceite na comunidade papal?! Zaga Zabo acha que bem melhor era que se unissem em Deus e em Cristo, arménios, etíopes e todos os que nos rituais não seguem ainda a disciplina católica - todos são abençoados pela água do baptismo. Zaga Zabo lamenta-se até às lágrimas por o não deixarem comungar e o ameaçarem de excomunhão.
Damião de Góis, no mais completo espírito erasmiano de tolerância, toma a sua defesa e pede ao Papa que receba o bispo de pele negra, o trate com generosidade e lhe permita a aproximação desejada a Roma.
O cardeal-infante D. Henrique que, até certa altura, o cumula de honrarias, não vai gostar nada deste livro damiano e proíbe que circule. D. Henrique é, também, o Inquisidor-Geral do reino.

O REGRESSO

Vindo de Pádua, Damião de Góis em 1539, casa em Lovaina, com Joana van Hargen, filha de um conselheiro flamengo do Imperador Carlos V, o que acrescenta a sua fortuna de homem de negócios que sempre foi, a par das actividades diplomáticas e culturais.
Em 1542, a cidade de Lovaina é invadida pelas tropas francesas de Francisco I. Damião de Góis está, de mão armada, entre os que combatem os sitiantes, não sem que, constantemente, pretenda encontrar formas de entendimento com os atacantes. Mas é feito prisioneiro. Por interferência de D. João III e do imperador é libertado, mediante o pagamento de um avultado resgate. Carlos V confere-lhe o direito a brasão e armas que o rei português confirma. Este momento da sua vida é motivo para grandes elogios por parte de poetas e filósofos flamengos.
Passaram vinte e dois anos desde a sua saída de Portugal. Exerceu os mais altos cargos em nome do seu país, é estimado e admirado em várias cortes europeias, louvam-no cardeais, escritores, teólogos, políticos, reformistas e humanistas, constituiu uma família feliz com Joana de quem já tem filhos…

AS TRÊS DENÚNCIAS DO JESUITA

Em Setembro desse mesmo ano, estando em Évora, Simão Rodrigues, então provincial da Companhia de Jesus em Portugal, dirige-se, de imediato, à Inquisição da cidade. Vai para delatar Damião de Góis, há pouco regressado ao país. E diz que vivendo ambos em Pádua, ouviu o futuro autor da Crónica de D. Manuel dizer coisas que, quanto a ele, declarante, eram heréticas, como o louvar as doutrinas de Lutero e ter em grande consideração tal pessoa. É de opinião que Damião de Góis neste seu regresso pode "fazer muito dano acerca das coisas da nossa Santa fé católica, porque é homem avisado e sabe, além do latim, alguma coisa de Teologia e sabe a fala francesa e a italiana e a flamenga e a alemã pois andou muito tempo entre eles". Disse ainda que Damião era grande amigo de Simão Grineus, um hereje da maior reputação entre os luteranos e também que falara com Lutero e fora discipulo de Erasmo. Ele e um tal frei Roque, convertido ao protestantismo, sempre o ridicularizavam quando ele, declarante, defendia a Igreja Católica. Perguntado se alguém ouvira tais conversas afirmou que não se lembrava.
Dois dias depois, Simão Rodrigues está de novo na Inquisição para acrescentar ter-se recordado de uma discussão, durante a qual o frade e Damião de Góis defendiam que a quebra do voto de castidade, por parte dos frades, não os impedia continuarem religiosos. Não tem dúvidas: eram ambos, o frade e Damião, luteranos e procuraram induzi-lo a converter-se a tal seita. E volta a não se recordar de mais nada, prometendo que, mal se lembre, logo virá contar aos inquisidores.
Durante cinco anos não tiveram andamento as denúncias. Simão Rodrigues de Azevedo não é homem para desistir, porém.
Em Setembro de 1550, desta vez em Lisboa, ei-lo na Inquisição. Confirma tudo o que declarara em Évora e acrescenta ter-se lembrado de, em certo dia defeso da Igreja, os dois acusados tentaram-no para que comesse queijos frescos e carne, a que se recusou, mas viu que ambos o faziam. Lembrava-se também de ter discutido com Damião de Góis a certeza da graça e que ele, ao contrário do que afirma S. Paulo, dissera que todos os homens podiam estar certos de que viviam sempre na graça de Deus.
Cerca de vinte e seis anos vão passar sobre estas denúncias. Só em Abril de 1571, Damião de Góis é preso.

O HISTORIADOR

Estranho caso! Apesar da alta posição de Simão Rodrigues, "testemunha legalíssima e sem nada que se lhe possa apontar", os Inquisidores não dão andamento à acusação durante mais de duas décadas. Porquê? Pode supor-se: D. João III é amigo íntimo de Damião, o Cardeal D. Henrique, idem, as acusações não têm testemunhas. Mas, sobretudo, porque Damião de Góis não é um fidalgote qualquer. O seu prestígio, por toda a Europa, mesmo entre luteranos e católicos de nomeada, impede se ouse levar adiante uma queixa que, não admiraria, iria terminar em auto-de-fé.
As altas autoridades da Nação, como ainda há menos de trinta anos se chamava aos detentores do poder, também em quinhentos não querem desafiar as nações amigas.
O assunto morre.
Damião de Góis prossegue a sua vida de grande senhor em Portugal e os anos seguintes vão afirmá-lo como um dos maiores historiadores portugueses. Mas o intenso labor a que se dedica nesse intervalo de vinte e seis anos, custar-lhe-á caro.
No entanto, Simão Rodrigues obtém uma pequena vitória. D. João III convidara, logo em 1545, Damião de Góis para mestre e preceptor do infante D. João, futuro pai de D. Sebastião. Simão sabe-o. Mais uma razão para o denunciar em Évora. Os jesuítas querem assenhorear-se da educação do príncipe. Damião é afastado do cargo.
D. João III convida-o, novamente. Desta feita, em 1548, para guarda-mor da Torre do Tombo.
É nesta altura que o "luterano" se muda para Lisboa. Oportunidade para na capital, donde gere também os seus négocios de comerciante com as principais cidades europeias, escandalizar certas pessoas. De facto, o historiador não resguarda a vida ostentosa e desafogada que leva, a tal ponto que vai à missa com um lacaio, pajens e um escravo que lhe carrega uma cadeira.
No cargo de guarda-mor, Damião de Góis aperfeiçoa, em contacto com os documentos, o seu ofício de historiógrafo. Não espanta, pois, que, em 1558, um ano após a morte de D. João III, o Cardeal D. Henrique, então regente do reino, o incumba de escrever a Crónica de D. Manuel. Opção inteiramente certa a do Inquisidor-Geral. Quem melhor do que Damião poderia elaborar a crónica de um rei em cuja corte vivera e a cuja morte assistira?
Trabalha duramente na redacção do texto. De tal modo que, alguns amigos estrangeiros, seus conhecidos, dirão ter ele envelhecido, enormemente, nesse período.
Em 1566, saem em português a 1ª e a 2ª parte da Crónica de D. Manuel. E, no ano seguinte, as duas partes restantes e a Crónica do Principe D. João.
Mal adivinha Damião de Góis que essa publicação lhe trará o regresso das denúncias do padre Simão Rodrigues.

OUTRA VEZ A CARNE

Luís de Castro, fidalgo da casa do Cardeal D. Henrique e seu tesoureiro, vem ao processo testemunhar ter ouvido Damião de Góis afirmar que houve muitos Papas que foram tiranos e que daí viera muito mal à Igreja, que muitos dos maiores eclesiásticos eram hipócritas e tiranos, mais do que os próprios leigos. Damião também lhe dissera que os padres da Companhia de Jesus não guardavam a pobreza instituida pelo fundador. E outras pequenas coisas mais.
Luís de Castro é genro de Damião de Góis e pleiteia na altura, com o filho do historiador, por causa das partilhas dos bens de Joana van Hargen, entretanto falecida.
D. Briolanja, andando prenha, em certo dia foi jantar a casa de Damião de Góis e, devido ao seu estado, lhe veio o desejo de comer carne e ele, Damião, pôs na mesa entrecosto de porco e linguiça. Espantou-se ela, assim o confessa no processo, que o historiador e a mulher também comessem pois era dia proibido pela Igreja de se comer carne. E ele lhe disse: "o que vai para dentro não causa nojo, só o que vem para fora".
D. Briolanja é sobrinha de Damião de Góis.
Outras testemunhas, entre elas o poeta Pedro Andrade Caminha, deporão. A maior parte acusa-o de ninharias e não ousa levá-las muito a fundo, antes pelo contrário, asseguram que, no mais, "nunca lhe viram fazer ou dizer coisa de mau cristão".
Mas Damião de Góis jaz na prisão desde Abril de 1571. Sem saber de que o acusam. Tem 69 anos, sente-se muito velho e alquebrado, tão cheio de feridas e sarna "por todo o corpo que me falta pouco para me julgarem leproso e quase não tenho já forças para me suster sobre as pernas". Está no silêncio, na incomunicabilidade: "peço-lhes que me mandem emprestar um livro em latim para ler, qual lhes parecer, porque estou apodrecendo de ociosidade e com ler se me passam muitos pensamentos".
Até que o chamam para as primeiras perguntas.
Damião de Góis não é um herói, não tem vocação de mártir.
Durante meses vai desfiar a sua vida perante os inquisidores, jurando pelos Santos Evangelhos dizer a verdade.

SIMÃO RODRIGUES VENCE

Assim que a 1ª e a 2ª partes da Crónica de D. Manuel vieram a público Damião de Góis foi fulminado. Homem do Renascimento, rigoroso na análise, embora habituado ao convívio hipócrita com os grandes, o historiador escolheu o caminho da verdade e da justiça. Não bajulou ninguém, não fez elogios por cálculo, não se amedrontou ao escrever os factos (alguns consideram Damião de Góis o primeiro repórter da nossa historiografia). Foi avaro a encomiar o Cardeal D. Henrique - e como este gostava de ser incensado! Atreveu-se a criticar a poderosa Casa de Bragança não dando relevo aos seus membros, ousou voltar à tolerância para com os cristãos etíopes. O que lhe interessava era a verdade, doesse a quem doesse. Mesmo que fosse a sua verdade. E se, quanto a estilo e emoção, fica muito longe de Fernão Lopes, a postura moral é idêntica e daí a sua importância.
Os Braganças caem-lhe em cima, os clérigos, o Cardeal. Nas edições seguintes truncam-lhe a Crónica, censurando-a, alterando-a, adulterando-a.
Damião de Góis perdeu o estado de graça em que até aí vivera na corte. Há muitos anos que está em Portugal. De certa maneira, esquecido lá fora. Os seus amigos foram morrendo ou mudando. O ninho de vespas pode morder--lhe. É um personagem sem risco: agora, vão atacá-lo.
Tudo leva a crer que é a mão daquele que o protegera a que se levanta para o acusar. De quê? As "ofensas" da sua Crónica não o implicavam com a Inquisição. A teia adensa-se: Braganças, os familiares, o Cardeal despeitado trarão para aliados os jesuítas. Quem se lembraria das acusações de Simão Rodrigues de 1545 e 1550? Só D. Henrique - escreveria qualquer autor policial de mediana craveira.
Luís de Castro, agastado com o sogro, terá sido, a mando do Cardeal (recordemos: era seu tesoureiro) o desencadeador da prisão de Damião de Góis e do processo contra ele. Do qual constam, à cabeça, os traslados das denúncias de Simão Rodrigues
Processo que o Inquisidor-Geral, desta vez, ordena que vá em frente.
Já se disse: Damião de Góis está velho, cansado e doente. Pede, insistentemente, aos inquisidores que acelerem as audições, dele e das testemunhas. Narra a sua vida no estrangeiro, os conhecimentos que travou, com Lutero, com Melanchton, com Erasmo. Acrescenta sempre que sempre criticara os dois primeiros. Terá dito algumas frases que foram mal compreendidas. Nunca se desviou da fé católica, nunca fez ou disse nada contra ela.
Mas tudo isso são pecados da sua juventude. Pede que lhos relevem, como tal. Apresenta testemunhas que o abonam como fervoroso católico, que revelam as muitas dádivas piedosas que fez a igrejas e capelas, lembra os serviços que prestou a Portugal e ao rei D. João III.
Os inquisidores lêem-lhe a sentença: é condenado a cárcere penitencial perpétuo. Aceitam-lhe a abjuração:
"Damião de Goes, cristão-velho, morador nesta cidade de Lisboa, perante vós, Reverendos Senhores Inquisidores, contra a herética pravidade e apostasia, juro nestes Santos Evangelhos, em que tenho minhas mãos, que, de minha própria e livre vontade, anatematizo e aparto de mim toda a espécie de heresia e apostasia que for ou se levantar contra a santa fé católica e Sé Apostólica, especialmente estas em que caí, que tenho confessado ante Vossas Mercês, que aqui agora, em minha sentença, me foram lidas, as quais aqui hei por repetidas e declaradas. E juro de sempre ter e guardar a santa fé católica que tem e ensina a Santa Madre Igreja de Roma e que serei sempre obediente ao nosso mui Santo Padre Papa Gregório décimo terceiro, ora presidente na Igreja de Deus, e a seus sucessores. E confesso que todos os que contra esta fé católica vierem são dignos de condenação."
Livra-se Damião de Góis de arder na fogueira. Mas a sentença é reveladora: mesmo o cárcere perpétuo é pena forte, o que talvez prove que os inquisidores lhe aceitaram a abjuração, embora convencidos de que era (ou fora) partidário do luteranismo.

QUEM MATOU?

Mandam-no a cumprir a pena para o Mosteiro da Batalha.
Aliviam-lha, porém, é o que parece, porque, a 30 de Janeiro de 1574 encontram-no caído sobre a lareira de sua casa, em Alenquer, morto, parcialmente calcinado. (Outros dirão que a morte se deu, dessa maneira, mas numa albergaria, ao transportarem-no para o mosteiro de Alcobaça).
Quando, em 1941, se fez a trasladação dos seus restos mortais para a Igreja de S. Pedro, em Alenquer, Mário de Sampaio Ribeiro, estudioso musical (Damião de Góis foi compositor), viu-lhe o crânio. Notava-se uma violenta pancada arredondada, improvável que fosse provocada por qualquer aresta, ao cair sobre a lareira.
Alguém o assassinara.