Pulo do Lobo

Um blog para os apreciadores do silêncio ...

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Localização: Neta, Alentejo, Portugal

terça-feira, agosto 22, 2006

A ideia da comadre Mónica


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Logo nos fins de setembro, quando tinham cahido as primeiras gotas de chuva, o Canellas tratou de encetar a sua vindima. Não era cedo já, a fallar serio. Havia duas semanas que o Garrocho começára, e que muitos lavradores tinham aberto os seus lagares. A novidade promettia. O verão ia temperado, no inverno não chovera de mais, e d'esta moderação de clima provinha a riqueza dos cachos e a vigorosa maturação dos fructos. Feitas as contas o Canellas devia seis moedas ao todo. O da Vanga emprestára-lhe tres libras para comprar o jumento na feira da Vidigueira; devia quatro meias corôas ao boticario, da doença da mulher; devia ao medico; devia uns fiados na loja; oito mil réis, das casitas. Se fosse feliz na colheita da uva, pagava tudo e ainda guardava a sua tarefasita de vinho. Deus ia ajudando um homem, dizia elle para a mulher, e quando o pequeno fosse crescido melhor passariam. Assim, uma bella manhã, o Canellas com a mulher e o filho, deitaram caminho das vinhas, mais o burro. Pela estrada iam encontrando os ranchos de vindimadores; os rapazes trigueiros e musculosos da freguezia, ceifões e polainas, os chapéos, de grosseiro feltro, derrubados para diante; grupos de raparigas de sangue vivo, grandes olhos ardentes de meridionaes, os cestos ao quadril; velhos trabalhadores corcovados, de barrete, alforge ao hombro, atraz dos seus jumentos vagarosos, felpudos e pacificos; pesados carros de duas rodas calçadas em chapas de ferro, luzentes do attrito no saibro das estradas e pejados de enormes cestões de verga, para o carrego das uvas. A cada volta do caminho convergiam veredas por onde os magotes derivavam, dando - boa fortuna! - aos que se dirigiam para outro sitio. O campo naquelle tempo começava a perder o viço. Entre vinhedos de um verde carregado, emmaranhado e pittorescamente confuso, alastravam-se a perder de vista os ferragiaes amarellos, seccos de raizes do trigo ceifado, onde as ovelhas mansissimas, sonoras de chocalhos, pasciam destroços, as hervagens finas dos barrancos, os fenos fibrosos dos corregos e as gramineas deixadas nos vallados. A região sem grandes depressões atrevidas, sem cordilheiras de arestas a prumo, oferecia á contemplação um aspecto sereno de ondulações graduaes, moldadas quasi na mesma curva regularissima; toda a zona abrangida num olhar, soffria o cultivo sollicito e amigo da aldeia próxima, branca agglomeração de casinholas de taipa, sem estructura regular, desenhada no fundo cinzento, metallico e um pouco triste, das grandes oliveiras de troncos fendidos. A léste, no esfumado anil da massa de ar, linhas quebradas de valles distantes esboçavam-se risonhamente na luz da manhã. Nos limites da freguezia, no termo, a herdade assignalava-se com azinheiras gigantes e sombrias, grandes braços pelludos de musgo, contorcidos como numa desesperação sem remedio, contra o risonho céo transparente, bordado pelo algodão das nuvens em farrapinhos tenues, como um capricho de criança. O Canellas dirigiu-se á sua vinha, que ficava distante. - Olha se nós recolhemos este anno um pótinho de vinho!... Vendido, dava bem para um porco de quatro arrobas. - O vinho ha-de estar barato, disse a Luiza, a esposa. - E eu hei-de ter uns sapatos, gritou o garoto, saltando com os seus rijos pés immundos, na poeira da vereda. O burro, de orelha pendente, o passo reflectido, o olhar tristonho e lyrico, ia caminhando, todo coberto de moscardos. À frente de todos, o cão Bedelho, corria e ladrava ás perdizes. O ar aquecia, o sol rebentava no céo a cascata da sua luz crua e candente, em quanto nos silvados e nas faias do proximo ribeiro, os garotos dos melros, na frescura humida das folhas espalmadas, faziam troça da companhia. A vindima durou-lhes quatro dias, e a novidade fundira-lhes bem. Foi um tempo alegre, o que passaram. Em quanto a Luiza toda arregaçada, de chapeirão nos olhos, colhia os fructos mais o filho, cantando, o Canellas com uma vara de marmeleiro dirigia o burro carregado com dois cestões cheios, da vinha para a aldeia, e com outros dois vazios, da aldeia para a vinha. Quando acabaram o trafêgo, houve jantar de carne, para que foi convidada a vizinha Monica, madrinha do rapaz. E á noite na banca da casa de fóra, jogaram-se as cartas, a Padre-Nossos. - Quando fôr tempo, disse a Luiza á comadre, ha-de provar um copinho do nosso. A Monica arrebitou a penca, um riso guloso. - Agora para o inverno, que é para aquecer. E vieram as confidencias, os orgulhos do bom governo de casa, a feliz plenitude de não deverem nada a ninguem - senão obrigações. Tinham pago ao medico, tinham pago á botica, ao da Vanga, os oito mil réis das casas... E ainda, na despensa, ao canto, fervia a talhita de mosto, objecto das mais caras esperanças e base de uma abundancia de chouriços em casa pobre, no inverno que ia entrar. A Monica, sêcca figura de viuva pobre, seios chatos e estereis, um grande lenço de chita preta no pescoço, as contas de louça desfiadas a Glorias e a Salve-Rairrhas durante a monotonia dos serões, roía-se de inveja, um riso amarello de comilona e desamparada. E formulando bons desejos que não sentia, ia pedindo a Deus désse aos compadres tanta fortuna como desejava para si propria. O casal agradecia. O Canellas, a espaços, esfregando as grossas mãos de cavador, observava: - Estemos pagos e sastifeitos! Cinco senhoras! - Estemos pagos e sastifeitos! E em côro, todos formulavam planos de futura prosperidade: a compra de uma courella á Barrada, a acquisição de uma adega e a postura de bacello, nas terras da Pichaleira. A Luiza tinha precisão de um capote de panno para ir á missa; indagava da comadre qual era o preço, queria do bom! - O meu, dizia a Monica, custou-me quatro sobranos. Ainda foi no tempo do meu homem, que Deus tenha. Que hoje!... Quero um trapo de uma saia e tenho de o ganhar. Desde aquella festança, a Monica cresceu de desvellos para o afilhado, vinha todas as manhãs saber como tinha passado a comadre, e como estava o pote do vinho. - Nada para sustancia como dois dedos de sumo. Logo pela manhãzinha, que regalo!... E armavam grandes palestras a respeito do tempo, das lavouras, dos casamentos e dos escandalos. A filha do Cardoso estava maluca pelo Francisco da Balsa. Contavam-se cousas bonitas. O mundo ia por agua abaixo. E por transições subtis, alludiam ao pote da despensa. Um domingo provaram. Era todo vermelho, transparente e fluido, de um aroma delicado de roupeiro e moscatel. Boa gota, comadre! Sim senhores. Boa gota! dizia a Monica, beberricando. E com um estalo de lingua: é de rachar pedras, caramba! De tarde sentiram a cabeça pesada e foram-se deitar muito vermelhas. No outro dia, outra. Cada vez sabia melhor. O rapazito estava na escola, a tratos com o Monteverde. Á noite, depois da cêa, o Canellas ia logo para a cama, cançado de cavar desde a romper do sol nas fazendas dos senhores proprietarios da terra, e não dava pela falta. Ellas, as duas, em se apanhando sós, era aos quartilhos. E dilatadas em narrativas eroticas de frades, de estudantes e mulheres infieis á honra conjugal, passavam as tardes juntas e os serões, com grandes risadas, uma profusão de gestos e de palavras, certa licença de epithetos, reparavel. Finalmente pelo Natal, o Canellas foi emechar o seu vinho, segundo o uso. Destapou o potito: que diabo!... Estava quasi meio. Chamou a Luiza todo desconsolado. - Ó mulher, não sabes? Temos o pote em meio. Quem tirou d'aqui o vinho? A Luiza debruçou-se, muito admirada. - Santo nome de Deus! exclamou. E com um accento choroso: ora vejam a nossa desgraça!... - Tu bebestel-o, mulher! affirmou o Canellas. Ella encarou-o duramente, sem resposta. O Canellas aprumou-se colerico. - Tu vendeste-o, mulher! A Luiza voltou-lhe as costas, desdenhosa. Á tardinha, depois d'uma scena violenta, o Canellas sahiu. A mulher foi a casa da comadre contar tudo, pedir conselho. A Monica depôz a meia, tirou os oculos gravemente. - Ai, não tenha receio. Esta noite, arranja-se. - Mas como, comadre, como? Se elle sabe de tudo, ai espinhela! Foi para casa cheia de medo. O Canellas voltou á noite para cear, taciturno, abatido, sem dar palavra. Bateu no pequeno mal achou pretexto, atirou o chapéo com mau modo. Ao entrar no quarto da cama, resmungava: - Estas bebedas, senhores!... Não dormiu toda a noite, a pensar no seu vinho e a amaldiçoar a hora em que casára. Mas não vira nunca a Luiza alegre, não tinha motivos de suspeita. Havia bons annos que não guardava vinho. O pote, de barro, estava talvez sêcco, era poroso, tinha seis gatos no bojo, podia ser que absorvesse, ou deixasse sahir o mosto. Mas tanto!... Deram dez, deram onze, deu meia noite, e elle ás voltas na cama. De repente sentiu correr no telhado. Poz o ouvido á escuta. Ouviu rir. Uma voz gritou: Canellas! Canellas! Riam, aos pulos, nas telhas. Canellas! Santo nome de Jesus! Era o diabo! Chamou a Luiza: ó mulher! Não ouves? São as bruxas. Não ouves? Canellas! Canellas! Começou a rezar o Credo, enganava-se no meio, começava outra vez, não sabia concluir. Diziam: - Vamos ao vinho! E a correria continuava. Vamos ao vinho! O pobre estava em suores, varada de medo. No outro dia, mal luziu o buraco, saltou fóra da cama, vestiu-se ás apalpadellas, poz a manta ao hombro, agarrou nos alforges, desprendeu o burro e partiu para o trabalho. Tinha a cabeça em agua, não se lhe tiravam da mente os gritos e as risadas. Canellas! Canellas! Então, as bruxas andavam com elle? Vamos ao vinho! Vamos ao vinho! E sentil-as-hia correr no telhado todas as noites, aos berros e ás gargalhadas, distribuindo os seus pobres almudes pela comunidade, e ainda em cima, escarnecendo-o. Durante o dia viram-no mettido comsigo, acabrunhado, carrancudo, dando enxadadas na terra desesperadamente, a suar como um cavallo. Ao cahir da noite entrou em casa; a Luiza estava ao canto da chaminé, diante do lume de azinho, o chale pela cabeça, aspecto adoentado e beato, o rozario entre os dois dedos. Demais, gravida de cinco mezes... - Ora santas noites! - Santas noites! Reparou na postura da mulher, tão finadinha como um carapau. - Que é isso? Estás doente? - Deixa-me, ando morrendo, mesmo morrendo. Todo o santissimo dia com febre, calefrios, dôres. Ai!... e nas cruzes. - Mas o que é? - Ella disse choramingando: - Não vivo muito, não! O Canellas commoveu-se: estás doida! E solicitamente, achegando-se: - E a respeito de vontadinha de comer, ha? - Nem nada, marido. Ainda hoje me não entrou migalha nesta boquinha de Deus. Tudo me sabe mal. - Mas não appeteces nada? chá e fatias; mata-se o gallo. - Ai, não! Só appetecia uma cousa. Mas não, é melhor não. - Dize o que é, anda. Se fôr caro, compra-se: ora!... Ella ficou calada, rezando automaticamente. - Então, que dizes? Que appeteces? Vamos. - Olha, o que eu comia agora, eram uns peixinhos da ribeira das Sormarias. Tenho mesmo vontade, mesmo de dentro. O Canellas foi logo albardar o burro, agarrou num cesto e pôz-se a caminho, sem querer ouvir mais. - Não tenha algum desmancho! ia elle dizendo. Apenas lhe não sentiu os passos, a Luiza correu a chamar a comadre. Entraram ambas na despensa. Tinham mettido o resto do vinho num odre; uma agarrou por um lado, outra por outro, e arrastaram o couro turgido até á porta. Era noite fechada e ninguem passava na rua. Das chaminés evolava-se o fumo dos lares, ouvia-se rir nas habitações das familias, e um cão latia no campo, sem echo, em quanto, acalentadas no berço, as crianças choravam. D'alli a pouco as duas viram chegar o Coxo, taberneiro, pesada figura de velhaco, apopletico, gorro sebento, um riso desdentado de patife, ironias bestiaes, navalha. - Venha o bago! disse a Monica. O Coxo quiz roubar-lhe um beijo. A Luiza occultára-se atraz da porta. - Podia ter vindo mais cedo, disse a velha. Estendia as mãos ao preço do odre, dizendo: - São tres almudes tinto; a quartilho, tres mil e seiscentos. Sete meias corôas e mais um tostão. Barato como pouco. O Coxo deu o dinheiro, pegou no odre, e foi-se depois de ter cingido amorosamente a estafermo. - Agora, tornou a Monica, venha a minha commissão e aqui tem o dinheiro. A Luiza deu-lhe seis tostões. - Vamos á ribeira, disse ainda a velha. Embrulharam-se nos chales, fecharam a porta; á socapa sahiram para o campo, e apenas na estrada, deitaram a correr. Era quem mais podia, por aquellas ladeiras acima, em direitura á ribeira. - Ai que arrebento! dizia a viuva, arquejante, a espaços. Afinal chegaram ao sitio. Pararam, em conferencia. - Tu vais para o outeirinho de lá. Eu fìco, mesmo defronte, agachada na rocha. Assim foi. Não viam nada á roda. O céo pesava de grossas nuvens caliginosas e tragicas. Esbarravam com as azinheiras seculares, cahiam sobre carrascaes e tojeiros. Nas trevas, as ramas torcidas pelo nordeste tinham gestos aggressivos, de réprobas. Por todo o campo, quando passava a rajada, sentiam-se risos abafados, segredos de feiticeiras, a sombra mexia-se, ondulava, tinha transmutações sinistras. O Canellas no entanto, estava mettido á agua, com o cesto no braço, puxando a linha da isca. Inda não conseguira apanhar peixe; o medo agoniava-o. Se as bruxas soubessem que estava alli!... De repente, cahiu uma pedra na ribeira, e esboroamentos de terra foram descendo, como deslocados por um pé em falso. - Mau! E o anzol não prendia. Diabo!... Pareceu-lhe que diziam segredinhos nas barranceiras, acima da sua cabeça. Andava gente em cima, viu um vulto acocorar-se. - Ó camarada! gritou elle, em tremuras. Tudo calado. Puxou a linha; nada! De repente, uma voz moribunda chamou: - Berrabaz! Outra respondeu: - Satanaz! O Canellas não sabia de que terra era! O que faria á sua vida? Alli acabava naquella noite. Benzeu-se. Iam dar cabo d'elle, espetar-lhe agulhas nos rins, metter-lhe á força um sapo nos dentes... Tornou a voz: - Vamos afogar o que está na ribeira? - Não, que a mulher está rezando o rozario á Virgem. - Olhem se a Luiza não tem ficado rezando ao lume, hein? Santa mulher! Como elle estava agradecido ás suas orações!... - Berrabaz! - Satanaz. - Um cão uivava funebremente, no casal do Pelles. O Canellas batia os dentes, deixára cahir o cesto. O vento dava risadas de escarneo, dançavam as azinheiras e o céo fazia ouvidos de mercador. A voz insistiu: - Vamos afogar o que está na ribeira? - Não, que a mulher está rezando á Virgem. D'alli a nada: - Berrabaz! - Satanaz! - Vamos a beber-lhe o vinho? - O Canellas pulou: - com mil raios? - Vamos. - Vamos a partir-lhe o pote? - Vamos. O desgraçado ergueu as mãos desesperado e murmurou chorosamente: - Ai a minha desgraça! Ai o meu rico vinho tinto! Alta noite, a Luiza enrolada sempre no seu chale, rezando sempre as suas contas ao canto do lar, viu romper pela casa dentro o Canellas esbaforido, sem peixes, sem anzoes, sem sapatos, sem chapéo, sem manta, alagado em suor, trémulo de medo e morto de cansaço. Contou tudo á Luiza: - E vai, ouvi dizer: vamos beber-lhe o vinho? Vamos. Partimos-lhe o pote? Partimos. Tu sentiste alguma cousa, mulher? A Luiza persignava-se, com os olhos em alvo. - Eu nada, disse ella. Não senti nada: uma cousa assim!... Foram vêr á despensa. Tinham bebido o vinho, e o pote estava em pedaços. Entraram a chorar. Veio a comadre. - Que é lá isso de prantos nesta casa? disse ella, afflicta. Contaram-lhe. - Pois eu lhes juro, que as bruxas nunca mais os perseguem. Sei as orações de as afugentar. De facto, nunca mais tornaram, nem bruxas, nem boas vindimas, nem potes de vinho. Tal foi a idéa da comadre Mónica.

F. D'Almeida