Pulo do Lobo

Um blog para os apreciadores do silêncio ...

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Localização: Neta, Alentejo, Portugal

terça-feira, agosto 22, 2006

A ideia da comadre Mónica


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Logo nos fins de setembro, quando tinham cahido as primeiras gotas de chuva, o Canellas tratou de encetar a sua vindima. Não era cedo já, a fallar serio. Havia duas semanas que o Garrocho começára, e que muitos lavradores tinham aberto os seus lagares. A novidade promettia. O verão ia temperado, no inverno não chovera de mais, e d'esta moderação de clima provinha a riqueza dos cachos e a vigorosa maturação dos fructos. Feitas as contas o Canellas devia seis moedas ao todo. O da Vanga emprestára-lhe tres libras para comprar o jumento na feira da Vidigueira; devia quatro meias corôas ao boticario, da doença da mulher; devia ao medico; devia uns fiados na loja; oito mil réis, das casitas. Se fosse feliz na colheita da uva, pagava tudo e ainda guardava a sua tarefasita de vinho. Deus ia ajudando um homem, dizia elle para a mulher, e quando o pequeno fosse crescido melhor passariam. Assim, uma bella manhã, o Canellas com a mulher e o filho, deitaram caminho das vinhas, mais o burro. Pela estrada iam encontrando os ranchos de vindimadores; os rapazes trigueiros e musculosos da freguezia, ceifões e polainas, os chapéos, de grosseiro feltro, derrubados para diante; grupos de raparigas de sangue vivo, grandes olhos ardentes de meridionaes, os cestos ao quadril; velhos trabalhadores corcovados, de barrete, alforge ao hombro, atraz dos seus jumentos vagarosos, felpudos e pacificos; pesados carros de duas rodas calçadas em chapas de ferro, luzentes do attrito no saibro das estradas e pejados de enormes cestões de verga, para o carrego das uvas. A cada volta do caminho convergiam veredas por onde os magotes derivavam, dando - boa fortuna! - aos que se dirigiam para outro sitio. O campo naquelle tempo começava a perder o viço. Entre vinhedos de um verde carregado, emmaranhado e pittorescamente confuso, alastravam-se a perder de vista os ferragiaes amarellos, seccos de raizes do trigo ceifado, onde as ovelhas mansissimas, sonoras de chocalhos, pasciam destroços, as hervagens finas dos barrancos, os fenos fibrosos dos corregos e as gramineas deixadas nos vallados. A região sem grandes depressões atrevidas, sem cordilheiras de arestas a prumo, oferecia á contemplação um aspecto sereno de ondulações graduaes, moldadas quasi na mesma curva regularissima; toda a zona abrangida num olhar, soffria o cultivo sollicito e amigo da aldeia próxima, branca agglomeração de casinholas de taipa, sem estructura regular, desenhada no fundo cinzento, metallico e um pouco triste, das grandes oliveiras de troncos fendidos. A léste, no esfumado anil da massa de ar, linhas quebradas de valles distantes esboçavam-se risonhamente na luz da manhã. Nos limites da freguezia, no termo, a herdade assignalava-se com azinheiras gigantes e sombrias, grandes braços pelludos de musgo, contorcidos como numa desesperação sem remedio, contra o risonho céo transparente, bordado pelo algodão das nuvens em farrapinhos tenues, como um capricho de criança. O Canellas dirigiu-se á sua vinha, que ficava distante. - Olha se nós recolhemos este anno um pótinho de vinho!... Vendido, dava bem para um porco de quatro arrobas. - O vinho ha-de estar barato, disse a Luiza, a esposa. - E eu hei-de ter uns sapatos, gritou o garoto, saltando com os seus rijos pés immundos, na poeira da vereda. O burro, de orelha pendente, o passo reflectido, o olhar tristonho e lyrico, ia caminhando, todo coberto de moscardos. À frente de todos, o cão Bedelho, corria e ladrava ás perdizes. O ar aquecia, o sol rebentava no céo a cascata da sua luz crua e candente, em quanto nos silvados e nas faias do proximo ribeiro, os garotos dos melros, na frescura humida das folhas espalmadas, faziam troça da companhia. A vindima durou-lhes quatro dias, e a novidade fundira-lhes bem. Foi um tempo alegre, o que passaram. Em quanto a Luiza toda arregaçada, de chapeirão nos olhos, colhia os fructos mais o filho, cantando, o Canellas com uma vara de marmeleiro dirigia o burro carregado com dois cestões cheios, da vinha para a aldeia, e com outros dois vazios, da aldeia para a vinha. Quando acabaram o trafêgo, houve jantar de carne, para que foi convidada a vizinha Monica, madrinha do rapaz. E á noite na banca da casa de fóra, jogaram-se as cartas, a Padre-Nossos. - Quando fôr tempo, disse a Luiza á comadre, ha-de provar um copinho do nosso. A Monica arrebitou a penca, um riso guloso. - Agora para o inverno, que é para aquecer. E vieram as confidencias, os orgulhos do bom governo de casa, a feliz plenitude de não deverem nada a ninguem - senão obrigações. Tinham pago ao medico, tinham pago á botica, ao da Vanga, os oito mil réis das casas... E ainda, na despensa, ao canto, fervia a talhita de mosto, objecto das mais caras esperanças e base de uma abundancia de chouriços em casa pobre, no inverno que ia entrar. A Monica, sêcca figura de viuva pobre, seios chatos e estereis, um grande lenço de chita preta no pescoço, as contas de louça desfiadas a Glorias e a Salve-Rairrhas durante a monotonia dos serões, roía-se de inveja, um riso amarello de comilona e desamparada. E formulando bons desejos que não sentia, ia pedindo a Deus désse aos compadres tanta fortuna como desejava para si propria. O casal agradecia. O Canellas, a espaços, esfregando as grossas mãos de cavador, observava: - Estemos pagos e sastifeitos! Cinco senhoras! - Estemos pagos e sastifeitos! E em côro, todos formulavam planos de futura prosperidade: a compra de uma courella á Barrada, a acquisição de uma adega e a postura de bacello, nas terras da Pichaleira. A Luiza tinha precisão de um capote de panno para ir á missa; indagava da comadre qual era o preço, queria do bom! - O meu, dizia a Monica, custou-me quatro sobranos. Ainda foi no tempo do meu homem, que Deus tenha. Que hoje!... Quero um trapo de uma saia e tenho de o ganhar. Desde aquella festança, a Monica cresceu de desvellos para o afilhado, vinha todas as manhãs saber como tinha passado a comadre, e como estava o pote do vinho. - Nada para sustancia como dois dedos de sumo. Logo pela manhãzinha, que regalo!... E armavam grandes palestras a respeito do tempo, das lavouras, dos casamentos e dos escandalos. A filha do Cardoso estava maluca pelo Francisco da Balsa. Contavam-se cousas bonitas. O mundo ia por agua abaixo. E por transições subtis, alludiam ao pote da despensa. Um domingo provaram. Era todo vermelho, transparente e fluido, de um aroma delicado de roupeiro e moscatel. Boa gota, comadre! Sim senhores. Boa gota! dizia a Monica, beberricando. E com um estalo de lingua: é de rachar pedras, caramba! De tarde sentiram a cabeça pesada e foram-se deitar muito vermelhas. No outro dia, outra. Cada vez sabia melhor. O rapazito estava na escola, a tratos com o Monteverde. Á noite, depois da cêa, o Canellas ia logo para a cama, cançado de cavar desde a romper do sol nas fazendas dos senhores proprietarios da terra, e não dava pela falta. Ellas, as duas, em se apanhando sós, era aos quartilhos. E dilatadas em narrativas eroticas de frades, de estudantes e mulheres infieis á honra conjugal, passavam as tardes juntas e os serões, com grandes risadas, uma profusão de gestos e de palavras, certa licença de epithetos, reparavel. Finalmente pelo Natal, o Canellas foi emechar o seu vinho, segundo o uso. Destapou o potito: que diabo!... Estava quasi meio. Chamou a Luiza todo desconsolado. - Ó mulher, não sabes? Temos o pote em meio. Quem tirou d'aqui o vinho? A Luiza debruçou-se, muito admirada. - Santo nome de Deus! exclamou. E com um accento choroso: ora vejam a nossa desgraça!... - Tu bebestel-o, mulher! affirmou o Canellas. Ella encarou-o duramente, sem resposta. O Canellas aprumou-se colerico. - Tu vendeste-o, mulher! A Luiza voltou-lhe as costas, desdenhosa. Á tardinha, depois d'uma scena violenta, o Canellas sahiu. A mulher foi a casa da comadre contar tudo, pedir conselho. A Monica depôz a meia, tirou os oculos gravemente. - Ai, não tenha receio. Esta noite, arranja-se. - Mas como, comadre, como? Se elle sabe de tudo, ai espinhela! Foi para casa cheia de medo. O Canellas voltou á noite para cear, taciturno, abatido, sem dar palavra. Bateu no pequeno mal achou pretexto, atirou o chapéo com mau modo. Ao entrar no quarto da cama, resmungava: - Estas bebedas, senhores!... Não dormiu toda a noite, a pensar no seu vinho e a amaldiçoar a hora em que casára. Mas não vira nunca a Luiza alegre, não tinha motivos de suspeita. Havia bons annos que não guardava vinho. O pote, de barro, estava talvez sêcco, era poroso, tinha seis gatos no bojo, podia ser que absorvesse, ou deixasse sahir o mosto. Mas tanto!... Deram dez, deram onze, deu meia noite, e elle ás voltas na cama. De repente sentiu correr no telhado. Poz o ouvido á escuta. Ouviu rir. Uma voz gritou: Canellas! Canellas! Riam, aos pulos, nas telhas. Canellas! Santo nome de Jesus! Era o diabo! Chamou a Luiza: ó mulher! Não ouves? São as bruxas. Não ouves? Canellas! Canellas! Começou a rezar o Credo, enganava-se no meio, começava outra vez, não sabia concluir. Diziam: - Vamos ao vinho! E a correria continuava. Vamos ao vinho! O pobre estava em suores, varada de medo. No outro dia, mal luziu o buraco, saltou fóra da cama, vestiu-se ás apalpadellas, poz a manta ao hombro, agarrou nos alforges, desprendeu o burro e partiu para o trabalho. Tinha a cabeça em agua, não se lhe tiravam da mente os gritos e as risadas. Canellas! Canellas! Então, as bruxas andavam com elle? Vamos ao vinho! Vamos ao vinho! E sentil-as-hia correr no telhado todas as noites, aos berros e ás gargalhadas, distribuindo os seus pobres almudes pela comunidade, e ainda em cima, escarnecendo-o. Durante o dia viram-no mettido comsigo, acabrunhado, carrancudo, dando enxadadas na terra desesperadamente, a suar como um cavallo. Ao cahir da noite entrou em casa; a Luiza estava ao canto da chaminé, diante do lume de azinho, o chale pela cabeça, aspecto adoentado e beato, o rozario entre os dois dedos. Demais, gravida de cinco mezes... - Ora santas noites! - Santas noites! Reparou na postura da mulher, tão finadinha como um carapau. - Que é isso? Estás doente? - Deixa-me, ando morrendo, mesmo morrendo. Todo o santissimo dia com febre, calefrios, dôres. Ai!... e nas cruzes. - Mas o que é? - Ella disse choramingando: - Não vivo muito, não! O Canellas commoveu-se: estás doida! E solicitamente, achegando-se: - E a respeito de vontadinha de comer, ha? - Nem nada, marido. Ainda hoje me não entrou migalha nesta boquinha de Deus. Tudo me sabe mal. - Mas não appeteces nada? chá e fatias; mata-se o gallo. - Ai, não! Só appetecia uma cousa. Mas não, é melhor não. - Dize o que é, anda. Se fôr caro, compra-se: ora!... Ella ficou calada, rezando automaticamente. - Então, que dizes? Que appeteces? Vamos. - Olha, o que eu comia agora, eram uns peixinhos da ribeira das Sormarias. Tenho mesmo vontade, mesmo de dentro. O Canellas foi logo albardar o burro, agarrou num cesto e pôz-se a caminho, sem querer ouvir mais. - Não tenha algum desmancho! ia elle dizendo. Apenas lhe não sentiu os passos, a Luiza correu a chamar a comadre. Entraram ambas na despensa. Tinham mettido o resto do vinho num odre; uma agarrou por um lado, outra por outro, e arrastaram o couro turgido até á porta. Era noite fechada e ninguem passava na rua. Das chaminés evolava-se o fumo dos lares, ouvia-se rir nas habitações das familias, e um cão latia no campo, sem echo, em quanto, acalentadas no berço, as crianças choravam. D'alli a pouco as duas viram chegar o Coxo, taberneiro, pesada figura de velhaco, apopletico, gorro sebento, um riso desdentado de patife, ironias bestiaes, navalha. - Venha o bago! disse a Monica. O Coxo quiz roubar-lhe um beijo. A Luiza occultára-se atraz da porta. - Podia ter vindo mais cedo, disse a velha. Estendia as mãos ao preço do odre, dizendo: - São tres almudes tinto; a quartilho, tres mil e seiscentos. Sete meias corôas e mais um tostão. Barato como pouco. O Coxo deu o dinheiro, pegou no odre, e foi-se depois de ter cingido amorosamente a estafermo. - Agora, tornou a Monica, venha a minha commissão e aqui tem o dinheiro. A Luiza deu-lhe seis tostões. - Vamos á ribeira, disse ainda a velha. Embrulharam-se nos chales, fecharam a porta; á socapa sahiram para o campo, e apenas na estrada, deitaram a correr. Era quem mais podia, por aquellas ladeiras acima, em direitura á ribeira. - Ai que arrebento! dizia a viuva, arquejante, a espaços. Afinal chegaram ao sitio. Pararam, em conferencia. - Tu vais para o outeirinho de lá. Eu fìco, mesmo defronte, agachada na rocha. Assim foi. Não viam nada á roda. O céo pesava de grossas nuvens caliginosas e tragicas. Esbarravam com as azinheiras seculares, cahiam sobre carrascaes e tojeiros. Nas trevas, as ramas torcidas pelo nordeste tinham gestos aggressivos, de réprobas. Por todo o campo, quando passava a rajada, sentiam-se risos abafados, segredos de feiticeiras, a sombra mexia-se, ondulava, tinha transmutações sinistras. O Canellas no entanto, estava mettido á agua, com o cesto no braço, puxando a linha da isca. Inda não conseguira apanhar peixe; o medo agoniava-o. Se as bruxas soubessem que estava alli!... De repente, cahiu uma pedra na ribeira, e esboroamentos de terra foram descendo, como deslocados por um pé em falso. - Mau! E o anzol não prendia. Diabo!... Pareceu-lhe que diziam segredinhos nas barranceiras, acima da sua cabeça. Andava gente em cima, viu um vulto acocorar-se. - Ó camarada! gritou elle, em tremuras. Tudo calado. Puxou a linha; nada! De repente, uma voz moribunda chamou: - Berrabaz! Outra respondeu: - Satanaz! O Canellas não sabia de que terra era! O que faria á sua vida? Alli acabava naquella noite. Benzeu-se. Iam dar cabo d'elle, espetar-lhe agulhas nos rins, metter-lhe á força um sapo nos dentes... Tornou a voz: - Vamos afogar o que está na ribeira? - Não, que a mulher está rezando o rozario á Virgem. - Olhem se a Luiza não tem ficado rezando ao lume, hein? Santa mulher! Como elle estava agradecido ás suas orações!... - Berrabaz! - Satanaz. - Um cão uivava funebremente, no casal do Pelles. O Canellas batia os dentes, deixára cahir o cesto. O vento dava risadas de escarneo, dançavam as azinheiras e o céo fazia ouvidos de mercador. A voz insistiu: - Vamos afogar o que está na ribeira? - Não, que a mulher está rezando á Virgem. D'alli a nada: - Berrabaz! - Satanaz! - Vamos a beber-lhe o vinho? - O Canellas pulou: - com mil raios? - Vamos. - Vamos a partir-lhe o pote? - Vamos. O desgraçado ergueu as mãos desesperado e murmurou chorosamente: - Ai a minha desgraça! Ai o meu rico vinho tinto! Alta noite, a Luiza enrolada sempre no seu chale, rezando sempre as suas contas ao canto do lar, viu romper pela casa dentro o Canellas esbaforido, sem peixes, sem anzoes, sem sapatos, sem chapéo, sem manta, alagado em suor, trémulo de medo e morto de cansaço. Contou tudo á Luiza: - E vai, ouvi dizer: vamos beber-lhe o vinho? Vamos. Partimos-lhe o pote? Partimos. Tu sentiste alguma cousa, mulher? A Luiza persignava-se, com os olhos em alvo. - Eu nada, disse ella. Não senti nada: uma cousa assim!... Foram vêr á despensa. Tinham bebido o vinho, e o pote estava em pedaços. Entraram a chorar. Veio a comadre. - Que é lá isso de prantos nesta casa? disse ella, afflicta. Contaram-lhe. - Pois eu lhes juro, que as bruxas nunca mais os perseguem. Sei as orações de as afugentar. De facto, nunca mais tornaram, nem bruxas, nem boas vindimas, nem potes de vinho. Tal foi a idéa da comadre Mónica.

F. D'Almeida

"Comam a relva"


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Só a vitória serve. Temos que relembrar a Europa do futebol que estivemos nos quartos de final da Champions League no ano passado e que tem que contar connosco este ano. Ainda por cima , pela primeira vez, poderao estar 3 equipas lusas na C. League. Força Benfica !

Stars Are Blind


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Inté canta e tudo a mecinha . Ainda nao perdemos a esperança de a ouvir cantar cá nas festas de Vale do Poço. A Romana já cá veio. O estrado é de madeira , assim com uns espaços entre as ripas, sabem como é ? E eu é que vou vender os bilhetes : plateia , geral , afastados e os mais caros debaixo do palco ...

Zé da Neta

sexta-feira, agosto 18, 2006

Os amantes aprovados


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É uma história simples. No ano de mil novecentos e trinta e tal, vivia na vilazinha de ..., no litoral, uma viúva respeitável, gorda, de olhar brando e bandós a picarem de cinzento. Tinha tido onze filhos, dos quais nove sobreviviam, e toda a aventura da sua vida fora a de, como mulher dum magistrado pobre, ter percorrido o país no decurso duma carreira anónima e sem fé. Triste, talvez não. O marido fora um tipo folgazão, sociável em extremo e que fizera grandes amigos, dos quais muitos também sobreviviam. A sua morte, acontecida em pleno vigor físico e quando esperava a promoção a juiz de segunda classe, provocara uma crispação de pânico nos nervos dos colegas e de toda uma pandilha fervorosa dos vícios de província, que são a má-língua, a política e o interesse - essas fístulas crónicas dos homens de quarenta. Os órfãos, de princípio socorridos com uma generosidade exaltada demais para permanecer fiel, foram aos poucos deixados sob a mão de Deus Padre, para que se criassem. Sabia-se que a mãe era senhora séria e de bons princípios, e isto sossegava - vamos saber porquê! - as consciências. Tinha ela na terra uma casa, pouco mais que um sobrado de pescadores, e para lá se arrumou com as crianças. Duas, protegidas por padrinhos, teriam estudos pagos e donativos de vestuário; os outros cresceram um pouco à sorte, no hábito dessa tragédia ensossa, pasmada, fria, da burguesia pelintra. Podia-se dizer que existiram entre a escola e o emprego na burocracia, sem conhecerem a cor do dinheiro. Entalados numa engrenagem de dívidas, promessas, esmolas, de caridade sopesada até à última gota na balança dos que em cada dádiva ou tutela parecem endossar a batata podre dum conceito inútil, da moralidade mais rapada e sem brilho, adquiriram todos uma sobreposição de personalidade que os fazia muito idênticos. Assim, todos sabiam dissimular e nunca manifestavam a tempo qualquer sentimento; reagiam por aprendizagem, não por instinto, e na sua alma tudo estava pregado e postiço como a lua no teatro do próprio Shakespeare. Com o tempo e a colocação do mais velho como prefeito dum colégio, mudaram-se para uma sobreloja, deixando o bairro excêntrico em cujas valetas os detritos de peixe atraíam grandes moscas verdes. Viviam pior que nunca, mas tinham conseguido o que se chama "ganhar pé". Possuíam um relativo crédito e, comprovada a sua penúria, os seus antecedentes duma honesta monotonia e o facto abonatório de que tinham vivido bem, a sociedade apaziguara-se um tanto e concedera-lhes certos direitos. Por exemplo, as raparigas traziam golas de velha pele sarnenta, sem que o mundo se risse, porque, nelas, os atributos da classe, o luxo, eram por assim dizer uma aquisição histórica. Admitiam-nas na intimidade superficial das pessoas finas, homenageando-as com a confiança de lhes pedirem favores como os de passarem bilhetes de rifa ou recortarem florinhas de papel para o Dia do Capacete. Enfim, podia-se afirmar que tudo corria bem, se algo de muito estranho e de imprevisto não abalasse a comovida paz dos benfeitores que são a multidão em geral quando se sente despreocupada. Constou que a viúva tinha um amante. Tínhamos dito que era ela mulher gorda, grisalha, de olhar brando, mas não seria bem assim. Era de facto um tanto pesada, com um andar cambaleante de quem sempre calçou chinelos de pasta ou de corda ou de seleiro; não vestia mais do que batas de algodão preto e parecia bastante mal, mesmo aos domingos, sobretudo aos domingos, quando, na missa das nove, se ajoelhava na sua almofadinha de setineta vermelha, ao lado do "altar das Dores". Tinha um rosto inexpressivo do muito que a fadiga se sobrepusera às emoções, e não parecia gostar de rir nem de chorar, nem sequer de observar os outros nessas ocupações. De resto, possuía ainda belos olhos, e a sua frieza de maneiras dava-lhe uma graça um tanto hostil que infundia ternura, depois de ter provocado receio. Era frequente vê-la atravessar a ruazinha de velho macadame, para vir arrastar pelo braço um ou outro filho que se filiava na trupe de garotio para, no átrio do cinema, esmolarem a quantia bastante à entrada. Fugiam-lhe para, no poleiro da geral que era como uma assembleia de jurados apinhados em degraus rente às coxias, uivairem ameaças contra "o cínico" daqueles filmes do Tim Mac Coy de belos dentes que se rolava num fosso da pradaria em chamas. Ai a linguagem desses ladrões de gado, desses sheriffs, dessas "cavadoras de oiro" que sugeriam fome e água de lavar pratos! "Labora num grande erro" - diziam, explicando a intriga e a traição, enquanto, com um rumor de vento infiltrado por fendas de pedreiras, ardia um rastilho de dinamite. Os rapazes precipitavam-se, no intervalo, até à rua, engalfinhavam-se possessos de coragem, imitando tiros; e iam, na lojeca próxima, comprar um pão encortiçado, de domingo, com talhadas de marmelada, ou cartuchos de paciências ou pastilhas Naval que chupavam laboriosamente, mostrando-as na língua uns aos outros, para suscitar invejas. - Raça! - exclamava a proprietária, que vinha, por condescendência, ajudar na loja, porque a frequência era aos magotes, e ondas de garotos embatiam contra os mostradores onde melavam os "caramilos" junto das onças de tabaco. Era uma mulher oxigenada, vistosa, cheia de ambições mal encabadas no seu ofício de mestra de meninos. Detestava as crianças, as suas roupetas com cheiro de peixe e de surro, as suas chancas tachadas, as suas sacolas de serrapilheira com flores pintadas e que a chuva esborratava; aplicava nelas o ódio pelo mundo de chateza e de frio que conhecera desde a infância, quando, deportada do seu nabal onde o pai sorvia cotos de cigarro sentado nos montículos de pilado, se fizera letrada. Casara ali na vila com um tipo mesquinho que usava manguitos de cotim e pesava quilos de arroz com a proficiência dum Shylock. A filha, bonita como ela, criara-a para outra classe, outro meio, outra vida. Quantas lágrimas raivosas, esses vestidos de folhos, essas sombrinhas japonesas! Quantos favores equívocos, nauseados, em que acumulava tédio e impotência, para que ambas, na Assembleia, sorrissem um pouco duramente, como quem pressente ter-se enganado na porta e no lugar, e espera a todo o momento uma advertência, uma rectificação! - Raça! - dizia, quando estendia sobre o balcão, procurando não tocar as mãozinhas onde o ranho seco escamava, os confeitos ou os pães varridos de farinha, muito lambidos, cor de cinza. E, em particular, a sua aversão atingia os filhos da viúva. Desprezava-os porque os achava pobres, raquíticos, enfadonhos, sérios; porque tinham hábitos finos, viviam disciplinados como formigas, usavam com naturalidade os seus trapos polidos com benzina, e porque as crianças abastadas os tratavam com deferência. Alguma vez a sua Loló, magra e frenética criatura de olhos verdes, brincara nos jardins dos palacetes, usara as trotinetes dos pequenos burgueses, fora conduzida a casa pelos seus criados? Loló percorria as ruas perseguida por uma turba de catraios de fralda ao vento que se dispersavam quando ela parava para os reconhecer - o que não acontecia nunca. Mesmo assim, denunciava-os a eito, a mãe se incumbia de distribuir reguadas nos nós dos dedos, ferindo, esfolando, com um olhar mau, nublado, e que fazia gritar os menos estóicos antes que se aproximasse deles. Ah, aquela viúva fora por muito tempo um espinho enterrado no centro do peito, fora um pouco como uma sombra projectada sobre um écran onde a paisagem corre! Admirava-lhe as belas maneiras, o ar sóbrio, sem sorrisos, porém sem amargura; invejava-lhe a tranquilidade com que parecia existir entre os filhos, que cresciam feiotes e pelados como ratos dos bueiros. De súbito, apareciam todos grandes, as raparigas com a sua beauté du diable, os seus vestidos inesperadamente à moda, tentando destinos, vivendo; os rapazes tinham agora boas relações, faziam carreira, modestamente, sem importunar, seguros. Também a sua Loló, delgada e cheia de it, dançava um pouco o charleston e namorava um miliciano. Mas as outras crianças, sempre as mesmas, com o seu cheiro de marisco na pele, com os seus narizes lacrados de monco amarelo, com os seus gritos à Tarzan, a sua bola de trapo, essas não cresciam. Continuava a sacudir-lhes as orelhas com varadas, enquanto lhes encaixava as medidas de peso ou de lenha. E um sol tão branco arredondando-se sobre o mar! E o trepidar dos carros no Largo de S. Tiago, na Avenida, na Praça! Meu Deus, meu Deus! Havia uma lampadazinha sobre a mesa onde corrigia exercícios, à noite, e a luz amarela escorria nimbando a sua cabeça oxigenada. Os frequentadores do cinema viam-na, e, na impressão imediata dos cartazes onde se contorciam mulheres como chamas, comentavam: "Parece uma vamp... a Brigitte Helm... a Marlène..." E ela sentia na pele, à flor da sua pele branca, empoada e levemente flácida, que falavam dela, e como. Foi ela a primeira a compreender e a revelar que a viúva tinha um amante. Era um rapaz de vinte anos, muito estranho, magrinho, e que leccionava num colégio; chamava-se David, tinha vindo das Ilhas, sem recursos, para estudar. Era interno, portanto, e passara a pagar com explicações aos primeiros ciclos as suas propinas. A viúva conhecia-o como colega dos filhos mais velhos, há bastante tempo, vira-os nas mesmas manhãs de Verão saírem juntos para o banho, com a toalha enrolada presa pelo cinto do maillot. Nos dias de aniversário, David sempre mandava um postal ilustrado às meninas - sempre garotas ricas entre flores, em áleas de jardins, e cores muito brilhantes. Ele era tristonho, quase bronco quando desconfiava de alguém ou simplesmente não conseguia adaptar-se; mas, familiarizando-se, rasgada a sua casca de timidez feroz, de orgulho mais feroz ainda, era maravilhoso. Havia nele uma coragem de sinceridade que nem era maculada pela consciência de virtude que a razão nisso podia surpreender. Na sua aceitação de tudo o que acontece, de tudo o que triunfa, de tudo o que perde, de tudo quanto é inútil ou sem estética, de tudo quanto é belo para vexame da nossa própria alma, havia paz. Às vezes sorria, quando todos se agrupavam fazendo traduções do latim, repuxando uma beiça sinistra sobre o queixo. Sorria, com o livro aberto diante dele, como se seguisse uma imagem deveras cheia de interesse e de humor. - Em que pensa? - perguntava-lhe a viúva. Ela sorria também. - É tão tolo viver exactamente assim - dizia David. - Dividimos o tempo e emparedamo-nos dentro dele. Mas não há tempo, o tempo não existe, o tempo é apenas memória. Olhe as violetas nessa jarra... murcharam, mas não têm a recordação da sua frescura, portanto existem num tempo único - compreende? - Compreendo. - E ela já não sorriu. O rosto cansado estremeceu, crispou-se, e voltou a adquirir a sua fria brandura habitual. Sim, tinha compreendido. Durante muitos dias esgotou-se em imobilizar-se dentro dela própria, em rastejar em torno da sua alma, para que ela não pressentisse quanto a vigiava, vendo se dormia ou velava; durante muitos meses viveu metodicamente entre a sua pequena gente escura, questionadora, mesquinhamente ansiosa e que se atraiçoava de quarto para quarto, de prato para prato. Julgava-se sossegada e igual a outrora, surpreendia-se a rir jovialmente, porque tal libertação a exaltava e lhe dava uma espécie de febril felicidade. Depois, recaía de súbito; David obcecava-a até ao ódio, queria que ele partisse, inventava planos para o afastar, para deixar de o receber, para não o ver mais; achava-o sem importância, voltava a rir-se da sua cegueira, a acusar-se de insensatez, de malignidade, de vileza. Rezava muito, mas, na sua prece, no mais ardente voto, brotava-lhe do coração o nome dele, mergulhava numa prostração terna, exasperada e submissa por fim. Adoecia e renascia da doença como a serpente que se desprende da própria pele e se esgueira vigorosamente para fora do ninho bolorento. Assaltavam-na escrúpulos que se traduziam em manifestações de sacrifício; o seu amor pelos filhos parecia recrudescer, escravizava-se a eles, contente se dominava a própria impaciência e o juízo desfavorável que o carácter deles, as suas pegas, a sua nulidade, o seu egoísmo desamparado e impotente lhe provocavam. Matava-se lidando inútilmente, infeliz quando percorria a casa e via que todas as coisas estavam correctas nos seus lugares, que a poeira vogava no ar sem poisar; tudo era tranquilo e mesmo, sob a mesa da sala, os gatos dormiam indiferentes a travessuras no velho tapete inglês muito rapado nas bordas como um caminho trilhado de roda dum capinzal. Sentava-se um momento, com as mãos no regaço, como alguém que espera num banco de estação; a imobilidade doía-lhe, agitava-a uma saudade de lágrimas que não podia chorar, e tudo o que até ali vivera lhe parecia importuno na sua memória. Punha-se a pensar então em David, o sangue pulsava- -lhe devagarinho nas têmporas, ela sorria como uma rapariga. Pensava nele, encontrando sofrimento e alívio porque ele lhe aparecia de repente tão distante como alguém já morto, como alguém a quem, à força de dedicar sentimentos e projectos, nos aproximou da indiferença e da erosão da alma. A vida como que estancava, ficava-se distraída a olhar pela janela o céu frio de Primavera que tão bem lhe sugeria toda a vila desenhada numa luz apática, com sombras que cresciam rapidamente pelos muros, com campos e noras, flores miniaturais balançando-se imperceptìvelmente como cabecinhas senis; e os areais onde se compunham redes, escurecidos aqui e além pelos detritos do mar, com recortes de babugem que, devagar, se evaporava. O céu frio de Primavera sobre a vila! Sobre as gavinhas tenras cheias ainda de penugem cinzenta; sobre os talos novos de roseira que, partidos, vertiam seiva doce; sobre os campos, sobre os campos... Frios, dum verde inacabado, com terra fria, fechada, hostil ainda, por debaixo. Esse arrepio agudíssimo do fim de tarde de Primavera comunicava-se-lhe. E, trémula, retomando a custo o movimento, a vontade, voltava a apropriar-se de si mesma. Quando falaram as vozes, dizendo que David e ela eram amantes, isso apenas se explicaria pelo pressentimento de catástrofe a que são sensíveis as colectividades. Viam-se pouco, nunca se tocavam; mas havia decerto neles uma exaltação de paixão que o próprio silêncio, a própria ausência e aparência de serem estranhos, confidenciava. Os filhos passaram a abandonar mais a casa, a tratá-la com uma cerimónia constrangida. Alguns choravam um pouco pela nostalgia da simbólica mãe; de resto, fora sempre o símbolo de mãe que eles tinham amado, e não a ela. Não a ela. Outros faziam-se mais viris com essa realidade que no fundo da alma os vexava; e torturavam-na. - É verdade? É verdade? - diziam. - Sempre fomos bons filhos, a pobreza não nos fez corar nunca, bruníamos as nossas roupas ao serão para te poupar canseira, desprezámos as raparigas para não te abandonarmos. Destruíste tudo isso. Já não podemos ter confiança, porque tu nos cuspiste na cara. - Mãe, mãe! - diziam as moças, com trejeitos duma cólera ávida, repelente, destruidora, a cólera sem finalidade das mulheres, que é apenas pretexto duma afirmação, duma quase vingativa expansão do sexo. - É uma canalhice!... E o próprio David, que sentenciava com uma voz em que se entrevia mais o prazer da audácia que a intenção de a poupar a ela: - Não há acções canalhas, mas almas canalhas. A mesma acção vivida por almas diferentes não é a mesma acção. Ela suspirava, levava a mão ao rosto como se fosse defender uma pancada. Não compreendia; não compreendiam. E, quando David encostava a cabeça nos seus joelhos, o silêncio denso os envolvia, o silêncio amassado com todo o vociferar da rua onde brincavam crianças e se descompunham peixeiras, com todos os soluços de agonia dos que morriam na solidão terrível daqueles a quem o próprio pecado abandonou, ela encontrava felicidade. Um dia, constou que se tinham matado. Ela aparecera com duas balas no peito, no soalho do seu pequeno quarto onde se respirava essa miséria estéril dos que apenas duram, apenas dormem, apenas sonham, apenas mentem. Castiçais de vidro, sobre a cómoda, diante de imagens baratas de arraial de peregrinação, tinham velhos pingos de estearina cobertos de pó. David respirava ainda. O caso, muito abafado, passou depressa, pois o mundo gosta de resgatar a sua responsabilidade com o esquecimento. Sim, com o esquecimento que antecede sempre a redenção. Tudo passou depressa; portanto, poucos anos depois, a vizinhança só banalmente se referia à viúva, aos filhos que tinham partido ou porque casavam, ou porque os vitimara uma febre, um desastre, ou porque a província os devorara como pequenos burocratas. Só quem fielmente se lembrava de tudo era a loira mestra de meninos, que continuava a corrigir problemas na sua mesa iluminada pelo candeeirinho que o tempo entortara e cujo abat-jour ficara sujo e pingão como um saiote de bailarina de guignol. A luz amarela fazia resplandecer os seus cabelos, e ainda os frequentadores do cinema olhavam, com um interesse logo extinto, o recorte da sua cabeça na vidraça. Mas já não faziam comentários. - Raça! - murmurava a mulher, riscando ferozmente de vermelho os cadernos cheios de borrões cor de violeta e onde a tripa da tinta se desenhava. Loló engordara e já não tinha olhos verdes, já não usava sombrinhas japonesas; já não tinha pretendentes vestidos de flanela branca como Conrad Nagel, como o Barrymore; casara com não sei quem, desia aos tropeções a sua escada estreitinha, agarrando-se de lado ao corrimão, com uns velhos sapatos debruados de pelúcia e que ganhavam pulgas - oh, esses sapatos de lã que criavam pulgas alimentavam a comunicabilidade calaceira, morosa, feliz, com mais do que uma vizinha! -, ia escolher papos-secos na padaria, fazendo-lhes estalar a crosta entre os dedos, espremendo razões de protesto em todas as coisas que aconteciam. - Raça! - dizia ela também. A mãe, ainda oxigenada, corajosa ainda porque se pintava sobre as rugas, sobre as feições desfeitas, desprendera-se muito dela. Às vezes pensava na viúva, em David, no seu amor que sentia vivo, penetrado no próprio céu frio de Primavera, fluindo de todas as coisas, mesmo as mais ingratas e inexpressivas coisas do mundo. Tinham-se amado - eles. Naquela casa de sobreloja onde habitara a viúva, não podia ver ninguém correr um estore, abrir uma janela, atirar fora os restos dum cinzento, sem que julgasse que tudo estava a acontecer ainda. Que, no quarto, que recebia luz duma clarabóia do corredor, dois seres tão verdadeiros como só podem ser os que compreendem que a morte participa da vida e a completa, agonizavam, sem tragédia, sem veemência, porque a tragédia, a veemência, não é dos que cumprem, mas dos que apenas os imitam. Os cartazes expostos no passeio do cinema, as mulheres serpentinas de olhar vidrado ou fulgurante, as paixões estereotipadas dum mundo senil, esgotado, impaciente! E aquela criatura, sem juventude, que vestia batas de chita, que era talvez um tanto estúpida e sem importância, mas cuja fealdade, limitação, pobreza, mereciam uma aprovação através do amor! Assim sentia a mestra de meninos que continuava a distribuir aos domingos pacotinhos de pastilhas Naval, reclamando o dinheiro certo na palma da mão para a dispensarem dos trocos. Os garotos apinhavam-se, repeliam-se, esmagavam-se contra o balcão, ela dizia "raça!", entediada e, apesar de tudo, lírica, porque não abdicava dos seus cabelos loiros, da sua solenidade, e porque, enfim, em cada esteta falhado há um lírico que se procura. Esta é a história simples dos que chamamos os amantes aprovados. Esquecíamo-nos de dizer que David sobreviveu. Que lhe aconteceu depois, não sabemos. Ou antes, na última vez que fomos à cidade, encontrámos na rua um homem que se lhe assemelhava muito; os cabelos eram mais raros e usava óculos. De resto, caminhava muito depressa e não o pudemos observar muito. Parecia um desses eruditos pobres que vivem num saguão, dormem sobre uma arca e eles próprios cozinham um arroz esturrado numa máquina de petróleo. Era bem ele, com o seu olhar retraído, fino, persistente, mas não podemos jurar. O mundo está cheio de pessoas que se parecem e todas se continuam, sim, todas se continuam. De qualquer modo, o David que nós conhecemos há muito... Mas nada temos já a acrescentar a esta história.

A. B. Luis

terça-feira, agosto 08, 2006

Força Benfica


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Esperemos que o sempre jovem Rui Costa conduza a equipa para um resultado que nos permita manter as justas aspiraçoes na Super Liga Europeia. E que o jogo sirva para definir a equipa base que será campea no final do ano . Viva o Benfica

terça-feira, agosto 01, 2006

O cabeça de boga


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No exame do segundo grau fiquei distinto; o Abílio ficou suficiente. Uma tristeza! Compareceu de calça comprida, colete branco, a "châtelaine" de D.Claudina fazendo de corrente de relógio. Como roía nas unhas, o relógio era um descanso para encher o minuto de ignorância, atrapalhado com aquilo de "Qual foi o rei que mandou plantar o pinhal de Leiria?". O Sr. Fontes, o professor das Cinco, que era membro do júri, bem cochichava de lá: "D.Dinis... D.Dinis!..." O Abílio, porém, doido por toiros, saíra-se com "D.Afonso Quarto, o Bravo" - e teve a raposa por um triz. Cá fora, esperavam-nos meu pai e o dele ao lado do Sr. Professor. O mestre não me disse palavra; mas a ele não o largou: - Este cabeça de boga que me vai estragar os resultados! O pai do Abílio estava com vergonha do filho, com raiva ao filho, com raiva ao Sr. Professor, com pena de si, do Sr. Professor e do filho: - Pedaço de mariola! (Olha como tens esse colarinho!) E fazer-me gastar um dinheirão para ver isto! - Este cabeça de boga, pôr-me uma nódoa na pauta! - teimava o Sr. Professor. O pai do Abílio agachara-se um pouco para lhe limpar as lágrimas, mas carregava no lenço e obrigava-o a assoar-se sem precisão nenhuma: - Força!... O toleirão, que era o primeiro em decimais! (Ó pequeno, não chores, que o Sr. Professor manda na Escola, e em ti quem manda sou eu!) Mas o Abílio chorava mordido e com os olhos raiados de sangue. Quando proclamaram os resultados, O Sr. Professor abrandou. - "Abílio Cardoso de Aguiar, suficiente. Mateus Queimado Gomes de Meneses, óptimo". Meu Pai deu um beijo no Abílio antes de me beijar a mim. O pai do Abílio apertou solenemente a mão de meu Pai: - Ah!, Senhor Meneses! Que consolação, um filho assim!

V. Nemésio

O esposo da pobreza


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Francisco de Assis, um dia,
Assim que deixara a orgia
No castelo,
Entregou-se à Natureza
A uma vida de aspereza
Num canto doce e singelo.
Abandonara a vaidade,
Buscando a paz da humildade,
A santa luz da harmonia;
E nas horas de repouso,
Francisco em estranho gozo
A voz de Jesus ouvia:

— “Filho meu, faze-te esposo
Da pobreza desvalida,
Emprega toda a tua vida
Na doce faina do bem.
Francisco, ouve, ninguém
Vai aos Céus sem a bondade,
Que é a grande felicidade
De todos os corações.

Esquece as imperfeições!...
Vai, conforta os desgraçados,
Sedentos e esfomeados,
Flagelados pela dor.
Quem alivia e consola,
Recebe também a esmola
Das luzes do meu amor!”

Francisco chorava e ria,
E em divinal alegria
Via os lírios e os jasmins,
Que não fiam, que não tecem,
Com roupagens que parecem
Vestidos de Serafins;
As aves que não trabalham
E no entanto se agasalham,
Nos celeiros da fartura,
Saltando de galho em galho
Buscando a graça do orvalho,
Bênção do Céu, doce e pura.

Via a terra enverdecida
Exaltando a força e a vida,
A seiva misteriosa
No seio dos vegetais,
E a ânsia cariciosa
Das almas dos animais.

E sobretudo, inda via,
A sacrossanta harmonia
Do coração sofredor,
Que não tendo amor nem luz,
Tem tesouros de esplendor
No terno amor de Jesus.

Francisco de Assis, então,
Submerso o coração
Em sublimes alegrias,
Entregou-se às harmonias
Vibrantes da Natureza,
Tornou-se o amparo da dor
E guiado pelo amor
Fez-se Esposo da Pobreza...

J. Diniz