Pulo do Lobo

Um blog para os apreciadores do silêncio ...

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Localização: Neta, Alentejo, Portugal

terça-feira, outubro 31, 2006

Pai e filho


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surrealismo


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O surrealismo surge no princípio dos anos vinte com um grupo de poetas liderados por André Bretón, procedentes do dadaísmo (movimento artístico e literário, aparecido na França em 1.916, que preconizava a volta a um primitivismo infantil).

É assim um movimento artístico de vanguarda surgido na França que buscava a exteriorização, lingüística ou plástica da espontaneidade e depurações de ordem racional ou moral. Opondo-se ao impulso anárquico de destruição proposto pelos dadaístas, o surrealismo pretendeu definir uma práctica artística alternativa à tradicional. Traz com ele o propósito utópico comum a todos os movimentos vanguardistas:" um homem novo em uma sociedade nova".

Em 1.924, André Breton, ao publicar seu primeiro manifesto do surrealismo, propôs aos artistas e escritores para que expressassem o pensamento de maneira livre, espontânea e irracional, externando os impulsos da vida interior, sem exercer sobre ele qualquer controle, inclusive de ordem estética ou moral.

Segundo André Breton, "Surrealismo é o automatismo psíquico puro pelo qual se propõe expressar, verbalmente, por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. O pensamento é ditado com ausência de qualquer outro exercício da razão, a margem de toda preocupação com estética ou moral. Noutras palavras: existe outra realidade, tão real e lógica como a exterior, que é a dos sonhos, da fantasia, dos jogos espontâneos do inconsciente que se desenvolve a margem de toda a função filosófica, estética ou moral.
Assim, o movimento pretendeu superar a realidade fragmentária e falsa apresentada pela nossa lógica, nossa moral e nossa estética rígida, para chegar a uma realidade superior. Propõe-se assim a afastar o que é convencional e fazer surgir a parte do homem que menos se expressa: o subconsciente.

Como estética, o surrealismo quis ir além da mera reprodução da realidade que até ao momento imperava. Para o surrealismo toda expressão artística deve referir-se não ao modelo externo, mas sim a outro, o interno, não condicionado por modelos culturais. Para atingir a esse "modelo interior", os surrealistas propuseram uma série de técnicas (automatismo, associações livres, hipnoses, "colagem" etc.) destinadas a liberar o potencial imaginativo e criativo do subconsciente. Desse modo, como característica do movimento podemos enumerar: a natureza aparece nas obras de forma hostil, os seguidores são influenciados pela psicanálise de Freud, sobressai o que é inconsciente, rejeita-se o consciente. O tema principal é o "sonho".
Foi assim que fora de qualquer preocupação estética ou moral, nasceu o surrealismo da pintura metafísica ambiental de De Chirico, Carrà e Moran.

Entre os principais precursores do surrealismo temos: Willian Blakem Odilon Redon, Hieronymos Bosch e até mesmo Goya. Os inspiradores directos do movimento foram: Hegel, Apollinaire e principalmente Sigmund Freud. Isso mesmo, aquele da psicanálise.
Entre os pintores são citados: Chagal, Max Ernest, Ives Tanguy, André Masson, René Magritte, Picasso, Joan Miró e a grande estrela desse movimento:

Dalí (Espanha-Figueras 1904-1989) apesar de se incorporar ao surrealismo quando o movimento já contava com alguns anos de existência e se de separar do mesmo relativamente rápido, é considerado pela imensa maioría de público como o paradigma do artista surrealista.
Isso se deve não só ao fanatismo com que ele se entregou à expressão onírica e a interpretação dos sonhos, como também à forma deliberadamente provocativa com que se supos exiibir todas as circunstancias íntimas de sua vida e seu pensamento.
Dalí foi um pintor surrealista de fanática dedicação. Seu método, chamado de "paranoicocrítico"- pareceu ajustar-se em um todo à sua pintura pela "excitação provocada pelas faculdades de espírito" e pela "organização de uma produção voluntaria e regular do objetivo".
Entre os anos 1937-1938, por sugestão do classicismo, Dalí situa a sua arte numa zona, que, se é heterodoxa a respeito do surrealismo programático, não deixa de estar ligada por fios subtís ao" sistema em vigor". Bretón denunciou a "impureza" e expulsou-o do movimento.
Hoje em dia a pintura de Dalí pode dizer-se que continua atada à mesma sistemática intima, mesmo quando com uma alteração de nome. Se antes foi "paranoicocrítico", agora chama-se "misticismo". Isso se deve a falta de sua associação "legal" ao surrealismo. É por tudo isso, que sua personalidade é distinguida há trinta anos.
Quem sabe, a melhor definição "didáctica" sobre o que é o surrealismo pode ser obtida examinando o quadro quase fotográfico de Cristo, na obra de Dali intitulada "Cristo de San Juan de la Crúz" (1951). Nela, Cristo paira sobre o mundo. Contudo, nossa visão está acima de Cristo, acima do mundo. Isso só pode acontecer numa visão surrealista.

No cinema, numa co-produção com Dali, o espanhol Luís Buñuel, produziu Um Cão Andaluz (1928).

Deixando um pouco Dali de lado, e como já foi dito, seguindo os princípios do surrealismo, poetas e pintores extravasaram as suas fantasias, de forma livre, procurando encontrar na profundeza da alma e do espírito a realidade objectiva. Os surrealistas procuram essa utopia liberando o mundo para o lado passional, para o inconsciente que havia sido revelado pelo psicanalista Freud. Sonhos e desejos são o material favorito do surrealismo. O artista tenta colocar em contacto o seu subconsciente com a obra de arte, eliminando a consciência no acto criativo. Serve-se de múltiplos caminhos: os sonhos, os mitos, a fantasia, as visões, as alucinações que produzem as drogas. Com tudo isso, procuram encontrar a percepção sensitiva e as possibilidades de expressão.

E o surrealismo, além de sua dimensão artística teve um objectivo último, e em certo modo transcendente: uma radical renovação da humanidade, através da transformação dos seus esquemas culturais, pois segundo Breton: "o homem tem guardada em seu próprio pensamento, uma realidade desconhecida da qual depende, sem dúvida, a organização futura do mundo".

quinta-feira, outubro 26, 2006

Evangelho segundo Sao Tomáz


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"QUANDO FORMARDES OS DOIS UM,
E O INTERNO COMO O EXTERNO,
E O ALTO COMO O BAIXO,
A FIM DE FAZER O MACHO E A FÊMEA EM UM SÓ,
PARA QUE O MACHO NÃO SE FAÇA MACHO,
E A FÊMEA NÃO SE FAÇA FÊMEA,
INGRESSAREIS ENTÃO NO REINO".

(dito 23 do Evangelho segundo São Tomáz)

terça-feira, outubro 24, 2006

Nada de novo



“… Além disso o povo não faz boas nem más acções e raríssimas vezes se move por sistema nem por reflexão: será cortês ou grosseiro, sisudo ou ralhador, pacífico ou insultador, conforme for tratado pelo seu cura, pelo seu juiz, pelo escudeiro ou lavrador honrado. O povo imita as acções dos seus maiores. A gente das vilas imita o trato das cidades à roda; as cidades o trato da capital; e a capital o da corte. Deste modo, que a mocidade plebeia tenha ou não mestre, os costumes (cultura), que tiver serão sempre a imitação dos que virem nos seus maiores, e não do ensino que tiveram nas escolas …”.
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quarta-feira, outubro 18, 2006

O amor em visita


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Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

H. Hélder

terça-feira, outubro 17, 2006

fightening for art


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When Allied bombs poured down on Germany, people close to Adolf Hitler realized that he was emotionally more disturbed by the destruction of historic buildings than by the deaths of his fellow Germans. Nazi propagandists, rather than attempting to hide his reaction, did all they could to make it known. They believed Germans would interpret Hitler's feelings not as proof of heartlessness but as evidence of an elevated artistic sensibility that even total war had not been able to destroy.
Possibly that's the way many Germans saw it. Every country values whatever it considers high culture. The Germans recently reacted with commendable fury when the Deutsche Oper in Berlin cancelled performances of Mozart's Idomeneo on the grounds that it might incite Muslims to violence; the severed heads of Jesus, Buddha and Muhammad appear in one scene and, as the director of the company noted, "We live in a very sensitive time." Public outrage has since forced the company to announce that it may reschedule the production if the authorities can make certain security guarantees.
But at times German cultural pride has become so obsessive that it's distorted the development of society. In an audacious new book, The Seduction of Culture in German History (Princeton University Press), Wolf Lepenies blames the catastrophes of 20th-century German politics on a tendency to overrate culture at the expense of politics.
A sociologist with a wide-ranging literary intelligence, Lepenies is among Germany's leading intellectuals. Tomorrow, at the close of the Frankfurt Book Fair, he'll accept the $36,000 Peace Prize of the German Book Trade, joining a list of laureates that includes Martin Buber, Susan Sontag, Vaclav Havel, Amos Oz and Orhan Pamuk.
For generations, German high culture was the great national achievement. In many fields, from music to universities, it set standards that the rest of the world tried in vain to emulate. But in Germany it was so admired that it made politics look shabby and irrelevant. Political accomplishments could be given an aura of legitimacy only if they were compared to art. The admirers of Chancellor Otto von Bismarck, who unified Germany in 1871, liked to call him a political sculptor or the Rembrandt of German politics. In the summer of 1870, with Germany going to war against France, even the 26-year-old Friedrich Nietzsche, no one's idea of a patriot, applied for leave from the University of Basel so that he could enlist; he wrote to his mother that France was attacking German culture.
Early in the 20th century, Germans refused to take politics seriously; the idea of compromise to create consensus was not on the German list of virtues. Politics was left to descend into blood-and-iron demagoguery or bogus imitations of high culture. Lepenies points out that the stirring rallies, charisma and soaring ambitions of the Nazis appealed to the public on aesthetic grounds. After the Second World War, when the Allies imposed democracy on Germany and the regime of Konrad Adenauer made it work, intellectuals and artists usually depicted his muted, comprising, humdrum government with lofty disdain.
Lepenies places near the core of his book Thomas Mann's famous 1918 essay, "Reflections of a Non-political Man." Mann argued that democracy was alien to Germans; they were interested in philosophy and music, not voting rights. In fact, they preferred an authoritarian state. He later changed his views (so did most of his fellow citizens) but his essay remains a touchstone in German history.
Culture-obsession produced many preposterous statements from various articulate Germans, but perhaps the most bizarre was a manifesto, "To the Civilized World," issued over the names of 93 well-known German intellectuals and artists in October, 1914, not long after the start of the First World War. They defended Germany's actions as innocent and necessary. For instance, Germany, being a peace-loving nation, had not violated Belgium's neutrality but had simply anticipated the invasion of Belgium by the French and British.
Most important, they said, foreign nations were making war not on German militarism but on German culture. The intellectuals solemnly promised to fight for the legacy of Goethe, Beethoven and Kant, which was as sacred to them as German soil.
Tragic history later added a powerful overlay of irony to their words. The 1914 statement was drafted by Ludwig Fulda, a playwright whose work reached as far as Hollywood (and provided Greta Garbo's last vehicle, Two-Faced Woman). A passionate German nationalist in 1914, he became nationalism's victim when it took a new form under Hitler. He was a Jew who committed suicide in 1939.

O suave milagre


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Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do lago de Tiberíade: – mas a nova dos seus Milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados, passou no fresco vale, e anunciou que um novo Profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia predizendo a chegada do Reino de Deus, curando todos os males humanos. E enquanto descansava, sentado à beira da fonte dos Vergéis, contou ainda que esse Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo de um Decurião romano, só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca para a terra dos Gerasénios onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jaira, homem considerável e douto que comentava os Livros na Sinagoga. E como em redor, assombrados, seareiros, pastores, e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro, lhe perguntassem se esse era em verdade o Messias de Judeia, e se diante dele refulgia a espada de fogo, e se o ladeava, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gog e de Magog – o homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativamente por sob o aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que verdeja até Ascalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar: as crianças, colhendo ramos de anémonas, espreitavam pelos caminhos, se além da esquina do muro, ou de sob o sicômoro, não surgiria uma claridade: e nos bancos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão sapiente certeza, os ditames antigos.Ora então vivia em Enganim, um velho, por nome Obed, de uma família pontifical de Samaria, que sacrificara nas aras do monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas – e com o coração tão cheio de orgulho como seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos, cepas mirradas, e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed, agachado à soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel.Apenas ouvira porém desse novo rabi de Galileia que alimentava as multidões, amedrontava os demónios, emendava todas as desventuras – Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que Jesus seria um desses feiticeiros, tão costumados na Palestina, como Apollonius, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simão o Subtil. Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos; com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egipto: e agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas, decerto, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Galileia o Rabi novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias, o trouxessem a Enganim, no país de Assacar.Os servos apertaram os cinturões de couro, – e largaram pela estrada das caravanas, que costeando o Lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o poente, vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte Hermon. Depois, na frescura de uma manhã macia, o lago de Tiberíade resplandeceu diante deles, transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro, e de alvos terraços por entre os palmares, sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca de uma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazaré? Oh! desde o mês de Ijar, o Rabi descera, com os seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas.Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio, até adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essénios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo Rabi da Galileia que, como os Essénios ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados? O Essénio murmurou que o Rabi atravessara o oásis de Engaddi, depois se adiantara para além... – Mas onde, «além»? – Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o Essénio mostrou as terras de Além Jordão, a planície de Moab. Os servos vadearam o rio – e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Poço de Jacob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egipto, mirra, especiarias e bálsamos de Gilead: e os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela lua nova, um Rabi maravilhoso, maior que David ou Isaías, arrancara sete demónios do peito de uma tecedeira, e que à sua voz, um homem degolado pelo salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos peregrinos até Gadara, cidade de altas torres, e ainda mais longe até às nascentes de Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudia ramos de mimosa, embarcara no lago, num batel de pesca, e à vela vogara para Magdala. E os servos de Obed descorçoados, de novo passavam o Jordão na ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um Fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da Lei. Encontrara ele por acaso esse Profeta novo de Galileia que, como um Deus passeando na Terra, semeava milagres? A adunca face do Fariseu escureceu enrugada – e a sua cólera tumbou como um tambor orgulhoso:– Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém? Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surdem os néscios e os impostores...E como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados – o furioso Doutor saltou da mula, e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando, Racca! Racca! e todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam, – e todavia, radiantemente, como uma alvorada por detrás de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus de Galileia.Por esse tempo, um Centurião romano, Publius Septimus, comandava o forte que domina o vale de Cesareia, até à cidade e ao mar. Publius, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra os Partas, enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Ática, e gozava, como favor supremo dos Deuses, a amizade de Flaccus, Legado Imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida ou bens, definhava com um mal subtil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo palidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara de Itália, numa galera enfestada. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Septimus, seguia um momento a ave, torneando, até bater morta sobre as rochas: – depois, mais triste, com um suspiro, e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar.Então, Septimus, ouvindo contar a mercadores de Chorazin, deste Rabi admirável, tão potente sobre os Espíritos, que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados para que o procurassem por Galileia, e por todas as cidades da Decápola, até à costa e até Ascalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira – e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando, sobre as lajes de basalto da estrada romana, que desde Cesareia, até ao Lago, corta toda a Tetrarquia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas: e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos, e malgas cheias de vinho que eles bebiam de um trago, sentados à sombra dos sicômoros. Assim correram a Baixa Galileia – e, do Rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis marchas, desconfiando que os Judeus sonegassem o seu feiticeiro para que os Romanos não aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os véus às virgens: e à hora em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas sinagogas, e batiam sacrilegamente com os punhos das espadas nas Thebahs, os santos armários de cedro, que continham os Livros Sagrados. Nas cercanias de Hébron arrastaram os Solitários pelas barbas, para fora das grutas, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o Rabi: – e dois mercadores fenícios que vinham de Joppé com uma carga de malóbatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dracmas a cada Decurião. Já a gente dos campos, mesmo os bravios pastores de Idumeia, que levam as reses brancas para o Templo, fugiam espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas de bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrogavam sobre eles as Más-Sortes, invocando a vingança de Elias. Assim tumultuosamente erraram até Ascalon: não encontraram Jesus: e retrocederam ao longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes.Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale, avistaram sobre o outeiro um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico de um templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados bradaram pelo Sacerdote. Conhecia ele um novo Profeta que surgira em Galileia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:– Oh romanos! pois acreditais que em Galileia ou Judeia apareçam profetas consumando milagres? Como pode um bárbaro alterar a Ordem instituída por Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que murmuram palavras ocas, para arrebatar a espórtula dos simples... Sem a permissão dos Imortais nem um galho seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas.Então devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesareia. E grande foi o desespero de Septimus porque a sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro – e todavia a fama de Jesus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais consoladora e fresca como a aragem da tarde que sopra do Hérmon e através dos hortos reanima e levanta as açucenas pendidas.Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara, dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como o bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera em Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso Reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava com olhos famintos. E esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah esse doce Rabi! quantos o desejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim: Septimus tão soberano destacara os seus soldados, até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesareia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Septimus. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que malta ou cidade, em que loca ou palácio, se escondia Jesus.A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, a mãe mais vergada, mais abandonada. E então, o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:– Oh filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi de Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazin até ao país de Moab. Septimus é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hébron até ao mar! Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora connosco, dentro destas paredes e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse, através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho, tão pobre, sobre enxerga tão rota?A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:– Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!E a mãe, em soluços:– Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
– Mãe, eu queria ver Jesus...
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:
– Aqui estou.

E. de Queirós