Pulo do Lobo

Um blog para os apreciadores do silêncio ...

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segunda-feira, novembro 20, 2006

Funçao Pública portuguesa


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Zé da Neta

quinta-feira, novembro 16, 2006

Mario Botas


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A obra de Mário Botas aparece no panorama da pintura portuguesa como uma pintura avessa a classificações, resistindo em toda a sua singularidade face ao aparecimento das correntes pós-modernas que ocorreram na sua geração. Nascido em 1953 e precocemente desaparecido em 1983, o pintor iniciou o seu trabalho em 1971, mas foi a partir do ano de 1977 que ele conheceu o grande “choque” que a impulsionou. Nesse ano, com vinte e quatro anos de idade, ele soube que a sua vida urgia, ao tomar conhecimento de que sofria de leucemia. A partir daí, ele descobre na obra a única razão da sua existência e o modo de perdurar no tempo.
Um olhar de extrema inquietação e curiosidade sobre o mundo, a par da leitura assídua de poesia e literatura, transformaram-lhe a pintura num universo essencialmente literário, que atinge a sua máxima expressão em Le Spleen de moi-même, onde o autor assina, no desenho da capa, o seu nome, acrescentando-o ao de Baudelaire. Ao longo do percurso pictórico, o contacto fecundo com a poesia e a literatura conjugam-se com o convívio estreito com muitos poetas (António Osório, Herberto Helder, Eugénio de Andrade, Raul de Carvalho, Cesariny, entre outros). Grande parte da pintura consiste em “ilustração” de livros de Gunter Künert, Raul Brandão, Almeida Faria, António Osório, bem como uma série de desenhos sobre temas do Antigo Testamento, outros comentando poemas de Mário de Sá-Carneiro e de Rimbaud, referências a Fausto, Le Horla, revisitações de vários temas mitológicos, como Réa, Ixion, Hécate. Um tema recorrente e ironicamente tratado é a história de Portugal: Leonor Teles, Fernandus Rex Portucalensis, O Enigma de Alcácer Quibir, A História Secreta de Portugal, A morte de Inês de Castro, os D.Sebastião, O Milagre das Rosas. O gosto pelo retrato de escritores que o fascinaram é igualmente uma tónica dominante, tal como o retrato de Kafka, Pessoa, Camões, Mário de Sá-Carneiro, Tristan Corbière, Rilke, etc.
Face ao panorama da pintura portuguesa dessa década, a obra de Mário Botas, assume um estatuto muito peculiar, articulando o poético e o fantástico, integrando a herança surrealista da pintura e transformando o seu universo pictórico numa atmosfera onírica, de um simbolismo inquietante e opressivo, reforçado pelo cruzamento com as referências literárias e pela revisitação do classicismo e da mitologia. Como ele próprio afirmava: “O que pinto gosta de se encontrar com as palavras, sobretudo com as palavras dos outros. Raramente parto do texto para a imagem, mas quase sempre esta precede aquele”. E a necessidade de fazer coincidir ou encontrar o plano da imagem com o texto é expressamente revelada: “Raramente procuro ilustrar, mas antes realizar uma obra paralela que só se esclareça inteiramente pelo relacionamento feito entre ambas.” Dessa indissociação nasce também a singularidade da sua pintura, um percurso simultaneamente original e marginal, em que a morte e o carácter visionário da obra o transformam num artista de culto.
É interessante acompanhar o seu percurso, tentando compreender o alcance e a profundidade do génio e a sua originalidade. Mário Botas nasceu na Nazaré, oriundo de família simples, tímido jovem de olhar melancólico e profundo - reconhecemos esse olhar nos auto-retratos que pintou. Foi estudar para Lisboa, onde terminou o curso de Medicina em 1975. No início, aprendeu os rudimentos da pintura e da arte com Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny, tendo realizado com eles colagens e cadavres exquis. Trabalhou igualmente com Paula Rego, Manuel Casimiro e Raul Perez.
O surrealismo interessou-o nessa primeira fase como ponto de partida, confessando posteriormente a sua desilusão. Ele interpretará o Maio de 68 como o “elogio fúnebre do surrealismo”, defendendo a ideia de que se torna necessário repensar um “novo dadaísmo” que conduza, não ao dogma surrealista, mas que se dirija antes para a mais extrema consciência da liberdade individual. O afastamento do “dogma surrealista” deveu-se em grande parte aos contactos cosmopolitas que procurava manter, em especial com o editor holandês Laurens vans Krevelen, com quem manteve correspondência até ao ano de 1977. É nesse ano do diagnóstico que o pintor-poeta rompe finalmente com o “dogma surrealista”, originando-se, a partir daí, a revelação de uma obra com cariz próprio. Apesar de ter sido a grande fonte do seu universo pictórico e poético, durante sete anos, essa cesura revela-se no álbum Confessionário (1976), fundindo um estado de espírito iconoclasta com uma ironia mordaz incidente nos recentes acontecimentos políticos (a revolução dos cravos e as suas consequências e excessos). A cisão com o surrealismo confirmar-se-á no álbum seguinte, Afrodisíacos (1976-1980), onde o papa do surrealismo é representado num desenho a tinta da china intitulado Cesariny, the waiter...
É também nesse ano de 1977, entre 18 e 19 de Dezembro, a alguns dias do seu vigésimo quinto aniversário, que o jovem pintor inicia essa “litania dos adeuses” de que nos fala Almeida Faria, desenhando dez ciprestes alinhados como um cortejo fúnebre. Nesse desenho, no texto que nele se integra, o jovem despede-se das manhãs e das madrugadas, das “queridas nuvens” que aguarelou, das “águas correntes de regatos imensos, que não estão no corpo mas na alma e desaguam sempre noutro rio até chegarem àquele a quem os antigos chamavam Letes...”. Esta obsessão de desenhar e encenar mapas mentais, de estranhas rotas e cartografias inquietantes, marca o início de uma nova etapa da sua obra, interiorizada e obscura, mas em que descortinamos, ainda, um desejo de adiar o inevitável.
Em Fevereiro de 1978, parte em busca de tratamento em Nova Iorque. Expõe nesse ano, individualmente, na Galeria Martin Summers e, colectivamente, em The Drawing Center. Aí encontra John Cage, o músico que lhe inspira A Dip in the Lake, aguarela de uma planta da cidade que pode ser Lisboa. Desses meses vividos nos Estados Unidos guardará referências que se lhe entranharão na obra. A vivência na megalópole transfigurar-se-á enquanto matéria mítica, magma fantástico ou poético que lhe ocupa a obra, tal como a leitura recorrente de mitos. A preferência pela literatura fantástica de autores como Borges, Blake, Swift e outros, paralelamente à de autores como Pessoa, Cervantes, Rousseau (que o marcará com a ideia do “bom selvagem”), Rimbaud, Lautréamont, Lewis Carroll, etc., inscrevem-lhe na obra a contaminação entre o mítico e o histórico.
Data desse mesmo ano de 1978 o contacto com a obra de Egon Schiele na galeria Serge Sabarsky, em Nova Iorque, que se revela fulminante, reconhecendo-o como um dos seus mestres. Nos cinco anos seguintes, a influência da representação agressiva e insistente dos retratos de Schiele marcá-lo-á de tal forma que António Osório o apelidará de “arqueólogo de seu rosto”. Essas figurações são formas de expiar e apresentar a ruinosa catástrofe, servindo-lhe o retrato como a imagem arquetípica, que reveste as múltiplas formas de se despedir de si próprio (assina assim um gesto flagrante de heteronímia), deixando na obra esse vestígio pungente.
Curioso é o modo como o seu rosto assoma e reveste tantas figurações, permanecendo nesses retratos uma indecibilidade fundamental dos rostos diversos que apresentam o mesmo: o seu. Seguindo o preceito de Schiele que Mário Botas entendia como “Centrado no seu ser único, Schiele não avançou apenas em termos de vanguarda artística; encaminhou-se para o que parece ser a posição essencial do artista. Não um produtor mais ou menos sofisticado de obras de arte, antes alguém que apaixonada e simultaneamente se desvenda e se oculta perante si próprio, guardando nos olhos a sua Imagem única e perturbadora.”
A fronteira entre retrato e auto-retrato é ténue - tal como em Egon Schiele, a osmose entre ambas é uma constante, visível sobretudo nos desenhos de Camões e Pessoa - e percorre um registo diversificado na mimese. Em alguns desses desenhos identificamos de imediato o pintor, ainda que os modelos dos restantes retratos nem sempre sejam claramente reconhecíveis. O que lhes confere esse tom onírico, entre o que se oculta e o que se desvenda, como se ele não se preocupasse com as similitudes do rosto, mas antes com a representação de uma imagem-matriz, inquietante e interior. Alguns dos retratos, em especial o de Tristan Corbière, possuem esse lado arrepiante e assustador que parece provir do pesadelo. Uma contaminação do horror que se sobrepõe à representação do rosto parece ser, muitas vezes, a tónica dominante, condensando o visionarismo que se associa à antecipação da própria morte. É como se, ao olharmos essas figuras, pudéssemos ver neles, à maneira barroca, o dente da morte que se ferra no vivo e no orgânico, destruindo-o. Toda essa perturbadora galeria de retratos remete-nos para uma ideia de catástrofe anunciada, um combate contra a aniquilação antecipada, um exorcismo dos demónios interiores, num pedido de apaziguamento constante.
Aliada às referências literárias, com particular incidência nos mitos trágicos de D. Juan - tema sobre qual elaborou diversas variações - e do Fausto, entre outros, surgem também as influências musicais, que se sobrepõem: Wagner, Alban Berg, Mozart, Richard Strauss e Weber. A intensidade e a espectacularidade da ópera encontram-se entre essas referências.
Como se estabelece o modelo subversivo que atravessa toda a sua obra? E que a transforma nesse universo de uma irredutível singularidade? Se a presença de um erotismo hermafrodita a perpassa, no entanto, esse erotismo conduz-nos mais longe, arrasta-nos na vertigem que se encontra no limiar entre a vida e a morte, entre o orgânico e o petrificado. Conviva próximo de Botas, a morte emerge como pano de fundo em toda a sua extensão, contrastando essa violência com a delicadeza das suas aguarelas, o que torna a atmosfera ainda mais estranha. O corpo, seja o do próprio ou de outras figuras (com particular relevo na fase final da obra), aparece sempre representado com a marca da ruína, trespassado ou meio corroído, num território de transgressão que vai desde a travessia das fronteiras (homem/mulher, inteiro/fragmentado, vivo/morto), recuando mesmo aos dogmas de religiões judaico-cristãs, tocando e subvertendo os dispositivos sacrificiais, anulando a distinção entre sagrado e profano, puro/impuro. Todavia, é a partir dos laços entretecidos entre morte e feminilidade, que atravessam toda a simbologia judaico-cristã, que retira o maior dos efeitos estéticos e pictóricos. A Morte como Mulher, no seu olhar envolvente e húmido, a Mater Dolorosa, percorre violentamente a última fase da sua obra, conferindo-lhe o tom de uma misoginia ácida. Outras travessias paralelas ocorrem, no plano material, sobretudo na íntima ligação que ocorre entre desenho, caligrafia e manuscrito.
A inquietação (e extrema riqueza do universo simbólico) na obra de Mário Botas advém-lhe da recusa de uma mimese da natureza, em que as representações são apresentações, num sentido próximo ao que Paul Klee defendia, de que a obra radicava numa crença no poder mágico do homem em criar novas realidades que conferem à vida esse excesso que não é da ordem do visível, mas sim metafísica. Por toda a parte, a alegoria revela o seu rosto melancólico, numa apresentação da ruína, dos monstros interiores, do corpo mutilado e da doença invasora, da morte que se anuncia, como no auto-retrato em que a ampulheta surge sobre o coração, anunciando o escoar do tempo de um modo obsceno, como nos quadros em que se auto-retrata como criança e o rosto se encontra dividido, uma parte ainda intacto, a outra imersa em escuridão. Ao longe, minúscula, espreita a figura expectante da morte. De um lado a infância, a nostalgia de um tempo perdido, a criança segura uma rosa na mão, a frágil flor da sua vida, do outro, a figura anunciada da catástrofe. Esse jogo dialéctico e de feroz violência repete-se amiúde em toda a sua obra, revelando cada rosto, cada corpo, cada figura, esse excesso do inominável, sob a forma de monstros, animais, figuras diabólicas e arrepiantes.
A atmosfera dos seus quadros também evoca a pintura de Bosch e, em especial, o tríptico “O Jardim das Delícias”, com toda a sua galeria de imagens sinistras de híbridos monstros, situada entre o onirismo e o erotismo. Contra a delicadeza da representação surge o absurdo da apresentação, numa imagem surreal, próxima do pesadelo. Por outro lado, há uma encenação teatral, em que o tempo se encontra espacializado sob a forma de casas, no quadro as “Quatro Estações”, essa dialéctica entre a nostalgia e a ruína apresenta-se frequentemente, nos quadros em que as árvores se ligam simbolicamente às diversas fases do tempo/casas. Entre a palmeira, árvore que se encontra ligada à esperança e ao passado, e o cipreste, hirto símbolo da morte. Toda a sua pintura oscila entre esta dialéctica alegórica, tão cara ao espírito de Baudelaire e ao sentimento do spleen. Se, por um lado, é antecipada a ruína e a destruição do orgânico (sempre na figura da morte, do monstruoso e da doença), por outro, também se mantém a ténue réstea de esperança, pelo apontar de retorno nostálgico à origem (a palmeira, evocando um tempo puro, a rosa na mão da criança, o Verão). Sobre este choque que nos provoca a sua obra, da experiência de fragmentação e de cisão do sujeito, quer como autor, quer enquanto espectador da obra, é que nos parece importante reflectir, pensando-o como modo estético operatório muito peculiar, uma apresentação do irrepresentável, que nos toma e engole por inteiro, que nos arrasta ao abismo e que nos coloca diante da fragilidade da vida como um espelho côncavo e distorcido, hiperbólico.
No outro pólo da contraposição encontra-se como temática fundamental, o sujeito narcísico de Egon Schiele, cuja obra reveste a densidade repulsiva de um erotismo que, em tudo, se afasta do organicismo de Paul Klee. Em Schiele, identificava Botas o “primeiro pintor moderno”, com a sua autoconsciência crítica e também pelo diagnóstico do mal de vivre, tão ínsito à poética de Baudelaire. O corpo subversivo, como apresentação confessional e subjectiva, tomado como objecto da obra de Schiele, transgredindo os cânones e referências ideológicas e religiosas, converte-se no veículo privilegiado da modernidade. Um “Eu” reflexivo e, por isso mesmo, alienado nessa reflexividade, tomado enquanto “Outro” e desapropriado de si mesmo, que encontrará em Artaud, Bataille e Pasolini um equivalente, como fonte do poético e da consciência ocidental moderna.
Todavia, esse narcisismo que no início da obra apresenta contornos de ironia sarcástica (uma das tantas formas que assume o cinismo alegórico), vai-se obscurecendo e fechando no final da vida. A morte assume a forma de um escândalo, remetendo para um descrédito relativamente à religião e a Deus, acentuando-se o pessimismo e a fragilidade, definindo os contornos do mais desesperado nilismo. Em Botas, a beleza procurada a cada instante revela-se um ardil, mostrando o horrível, tal como a bela mulher, em Baudelaire, revela a caveira, a morte: esconde-se na luxúria da beleza (daí que a figura da morte seja feminina, na sua pintura), assalta o que por ela se deixa cativar e deslumbrar. Tal como o rosto de Narciso, o paradigma desse escandaloso paradoxo, reflectindo-se no espelho das águas, o que não é senão a visão última e derradeira, reveladora, a verdade a que Narciso sucumbe. Mas esse espelho é ainda e sempre a alma humana.

sexta-feira, novembro 10, 2006

A mulher das cavernas


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Zé da Neta

História de dois patifes


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Toda a manhã, Fernanda andou impaciente pelas casas, esperando os gatinhos. Ao acordar, fôra aquella a sua primeira idéa - os dois pequeninos animaes cheios de viveza e graça, em cujos olhos ria uma innocencia travêssa e dôce. Havia tempos que a tia Consuelo lh'os promettera, quando fossem crescidinhos. E a cada visita à boa senhora, Fernanda levava horas e horas com elles, brancos de neve, uma finura de pennugem que acariciava a pelle, as duas cabecinhas inquietas com orelhas que se fitavam petulantemente, a cada ruido do gabinete. Fernanda tinha uma paixão por aquelles dois diabitos brancos que levavam os dias, ou sugando as tetas da mãi, grande gata de pello fulvo e pupillas glaucas, ou rebolando no tapete os corpinhos electricos, numa embriaguez de vida que fazia prazer. O gato era o mais leviano, com as suas patinhas fôfas e os dedos rosados na planta, de que as unhas transparentes e curvas sahiam desembainhadas, nos momentos de irritação, se lhe pisavam a cauda. Tinha os olhos azues, cheios de fibrilhas inquietas mais escuras, uma ingenuidade selvagem no encarar, fitando as orelhas velludinosas, em que parecia residir toda a petulancia d'essa cabeça infantil. O focinho côr de rosa, com barbicas alvoroçadas, sorria um pouco, mesmo quando assanhado, e das gengivas vermelhas e humidas, os dentinhos em serra, agudos e pequenos, resahiam gulosos, desafiando a gente. A gatinha affectava mais seriedade e mais coquetterie, uma ambição contida de se fazer senhora, e uma sciencia complicada em se fazer amar do macho. Nunca era a primeira no ataque, e zangava-se mal presentia uma offensa. À comida exigia os melhores pedaços, rosnando sôfrega, com a pata irriçada de unhitas curvas, contra o primeiro que lhe chegasse ao prato. Dormitava muito, como a mãi; ás vezes o irmãosito chegava-se cauteloso, estendendo as patas e movendo vagarosamente a cauda, as pupillas cheias de um clarão de patifaria. Com um movimento destro erguia uma pata - zás! - no ventre da sua companheira, que entreabria preguiçosamente os olhos, immovel, com o focinho enterrado na pennugem do ventre. Esta indifferença benevola, arrojava o gaillard do gatinho a maiores garotices. Chegava-se muito meigo, unhas escondidas, o dorso alto, as orelhas chatas e deitadas para traz. Com as duas patas da frente, cingia o pescoço da pequenina, e entrava a morder-lhe repetidamente o peito, os labios, a pontinha das orelhas, em quanto com as unhas trazeiras lhe raspava voluptuosamente o ventre e as côxas, provocando cocegas. Ella estremecia, toda percorrida de um gozo intimo e alongando o corpo para traz; e de ventre para o ar ficava immovel, espreitando, com a bocca entreaberta e os olhitos reluzentes de uma caustica lascivia, de bacchante núa. Abraçavam-se então, luctando, as caudas em espiras; armavam saltos por cima dos moveis, iam esconder-se nas franjas espessas dos fauteuils muito baixos, e suspendendo-se em cacho dos pés esculpidos das consoles encrustadas de metal e madre-perola, sacudiam-se, balançando os corpos como dois gymnastas em exercicios de destreza. A tia Consuelo impacientava-se já de semelhantes correrias. Descobrira uma nodoa no carmezim do divan da sala e achára extripado a unhadas o ventre de uma antiga bergère preciosa, do tempo da senhora infanta D. Anna. Além d'isso, a estroinice dos brutinhos punha uma nota impertinente na monotonia somnolenta da casa, antiga casa cheia de silencio e conforto, onde o piano dormia mezes inteiros e os moveis do salão alinhavam, como collegiaes em revista, os seus bôjos vestidos em camisas de bretanha. A gatarrona mãi toda insensivel às festas, muda e impertigada como a dona da casa, era tão indolente como esta; e ao lado de D. Consuelo, sobre uma almofada de sêda, dormia dias inteiros, com uma colleira escarlate de fechos de ouro. Só ella, com a sua idade circumspecta e a sua molleza freiratica, dizia bem no salão de côres austeras em que D. Consuelo recebia os padres de S. Luiz e as irmãs do Coração de Maria, e levava as tardes sepultada na voltaire, toda amortalhada em velludo negro, touca de rendas pretas e as Meditações sobre o divino Jesú nos joelhos. De fórma que, um domingo determinou expulsar do santuario os patifes ruidosos, o que alegrou Fernanda vivamente: ia emfim ser toda d'aquelles garotinhos gentis e ferozes. Era domingo, luminoso dia de primavera germinadora e florida, sonora de rumores de gente festiva e cortado de vôos d'andorinhas meigas, que entravam a construir os ninhos pelas cimalhas das aguas-furtadas. Fernanda não quiz almoçar sem que os bichos viessem; conseguira dois lugares á mesa para elles; a gatinha ficar-lhe-hia quasi no collo, o gato mais longe, com um pratinho de porcellana provido dos melhores bocados. E que nome lhes poriam? Foi um meditar profundo sobre o problema. Houvera em casa uma gata franceza, que morrera de velha e tinha um rabo branco caricioso - a Blanche. Pobre querida! Estava sepultada no jardim entre duas roseiras de todo o anno. E Fernanda recordava o seu modo subtil de se roçar pelas saias á comida, com o rom-rom dolente de uma beata offerecendo rezas, e o seu comer difficultoso de desdentada, rejeitando os ossos das perdizes e preferindo bolos fôfos, de recheios aromaticos, que ao almoço se serviam em pilhas, sobre cabazinhos de rosas, de velho Sèvres rocócó. E apparacera morta uma manhã de inverno, ao pé do lago. A gatinha devia chamar-se Blanche tambem, um nome da côr do seu vestido setinoso de princeza. Mas o Arthur, o garoto mais velho da casa, era de opinião diversa. Segundo elle, deviam baptisar-- -se os dois bebés, na banheira de marmore do rez-do-chão, sendo elle padrinho, mais o trintanario. Mergulhariam os moiritos na banheira cheia de uma agua perfumada, ao som de rezas que só elle sabia, e de umas bengaladas valentes, ao primeiro berro que soltassem os neophytos, na banheira trasvasando. Depois do que, seria servido vinho aos pequenos, com applicação de pancadaria supplementar e guizadas ao pescoço - o que os tornaria fortes, avisados e aptos á comprehensão da vida e á constância na lucta com as arganassas, que por acaso encontrassem nas excursões á despensa ou ás cocheiras da casa. Fernanda magoou-se com semelhantes opiniões, e quasi chorou pelos pobres innocentes que lhe mandava, do fundo do seu conforto beato e egoista, a boa tia Consuelo. Quando elles chegaram num cabaz de vimes, com laços ao pescoço e um pouco assustados da jornada, Fernanda não sabia que fazer para melhor exprimir a sua satisfação: era um côro de risos candidos e gorgeios innocentes; ia do pai para os joelhos da mamã, e esquecida já das maldades do Arthur passava-lhe os braços ao pescoço, cobrindo-lhe a face de beijos. Quizera para os dois gatinhos todo um palacio de sêda e gulodices, com o seu trem completo de cozinha, a longa bateria de peças de folha reluzentes e pequenas, fogões installados nos respectivos poiaes de madeira pintada, um serviço de porcelana fina, mobilia e carruagens elegantemente forradas a pedaços de setim de todas as côres, lavatorios e leitos, uma multidão de objectos microscopicamente construidos, que a paciencia da mamã adquirira, durante uma semana inteira de investigações, pelos armazens de quinquilharias da cidade. E a installação, que encantadora e que trabalhosa!... A gatinha saltava desdenhosamente por cima das ottomanas e das causeuses delicadas, atirava com lavatorios e caçarolas, fazendo com a cauda desabar os guarda-louças tão ricamente providos. Quanto ao gato, foi impossivel metê-lo no kiosque dourado onde tantas preciosidades de mobilia se accumulavam. Ao primeiro esforço de Fernanda para o fazer entrar, assoprou raivoso, desembainhando unhas ameaçadoras contra a dôce protectora, que tão generosamente lhe offertára opulencia e conforto. E apenas o largaram no parquet, desatou a fugir pelas salas como um desalmado evadido. Em breve, Fernanda se persuadiu da impossibilidade completa de fazer caseiro o ménage. E a pomposa e pequenina residencia passou a ser habitada por uma familia extraordinaria de bonecas de todos os tamanhos. A paixão do loiro amorzinho pelos dois maus animaes vertia agora o fel de uma ingratidão profunda. Ella não podia comprehender realmente o desdem soberano dos gatos pelas magnificas provas de amor que lhes dera, no seu enthusiasmo de pequena caprichosa. E nos primeiros dias, os seus afagos para o gatinho orvalhavam-se das lagrimas d'um resentimento angelico e mal contido. Elles, os dois patifes, adquiriram pouco a pouco a sua franca e leviana liberdade; ao almoço e ao jantar subiam pelos vestidos e pela toalha, reclamando em voz alta o seu talher de pessoas de familia; atacavam sem a menor cerimonia os pratos que apanhavam sem guarda no aparador e nas bancas da cozinha; iam miar em côro por baixo das alcofas da carne crua e dos cabazes providos de peixe fresco; escamugiam-se surrateiramente para a despensa a encherem os bandulhos de quanto apanhavam de succulento, e umas vezes por outras, nas noites humidas e chuvosas, tinham o pessimo costume de afiar as unhas nos mognos polidos e nos estofos matizados dos gabinetes, sulcando e rasgando, sem preferencia e sem attenção de preços. Fernanda ria com elles e achava-os de uma graça captivante. E a todo o transe defendia-lhes as velhacadas, orgulhosa de soffer pelos que amava com tamanha loucura. Chegou o dia dos annos do Arthur - uma quinta-feira, em maio. Determinaram ir passar o dia á quinta, em Carriche. Ia a boa dama Consuelo, as pequenas Magalhães, as primas Lopes e todo o mundo infantil da familia. Na vespera, disfarçadamente, em quanto o Arthur estava no colegio, Fernanda sahira com a mamã á compra de presentes para o dia seguinte. Tinha um mundo de projectos na mente: torres ideaes de cartonagem com sinos dourados e portaes de columnellos; jardins de cascatas surprehendentes, grandes exercitos de chumbo formados em ordem de ataque com baterias de latão; as arcas de Noé em que reside um mundo inteiro de bugigangas coloridas; esquadras empavezadas de flammulas com almirantes de estanho, commandando tripulações de madeira suissa; pequeninos theatros com figuras de verniz e paizagens ternas de Nuremberg; tudo quanto a phantasia pode realizar de pueril e caprichoso e quanto uma criança pode exigir, na incoherencia dos seus devaneios côr de rosa. A mamã aconselhava um cabazinho de dôces frescos, do Baltresqui. Era mais delicado! Mas Fernanda tinha os olhos numa cathedral de madeira branca, elegantissima de cupulas e rendilhados, por cujo pórtico profundo e alto na sua escadaria de balaustres gothicos, uma multidão de fieis ia subindo, collada com gomma arabica. - Que lindo, mamã, que lindo! dizia ella pousando devotamente as duas mãosinhas toute roses, no magnifico zimborio com ventanas de espelho e ornatos de cartão representando faunos engalfinhados. E imperiosa, impertigada nos tacões dourados dos seus sapatinhos de verniz, declarou que escolhera, e que o Arthur deveria ficar muito encantado de um presente de tal modo original. A cathedral foi conduzida na carruagem com extremas cautelas, ao lado de um chapéo que para a pequenina a mamã escolhera na Emilia d'Abreu. Recolheram cedo a casa, antes do pequeno voltar, e á noite num gabinete fechado e sobre a larga mesa coberta de tapete, os presentes da familia e dos amigos do Arthurinho ostentavam, num soberbo bazar, as suas fórmas pittorescas e os seus matizes originaes. Eram os cabazes de camelias vermelhas bordadas de heras e pequeninos bouquets de violetas de Parma; as bocetas de côres vivas e esmaltes garridos, turgidas de doçarias caras; grupos de porcelana e terre-cuite numa infinidade de posições ingenuas ou garotas. A Laura deixára a sua photographia risonha de cherubim pensativo, um rostinho dôce coroado de uma bella cabelleira loira, em anneis. E os amigos todos, o Alfredo, o José e os dois gemeos Nogueiras, tinham vindo trazer uma lembrança amavel, chicotes, capacetes, cavallos de molas, magicos em caixas, o diabo! Ao centro a cathedral de Fernanda com as suas torres severas, de um gothico amaneirado, e o seu zimborio de columnellos flexuosos, erguia-se magestosamente no meio da cidade de camelias e violetas, e das pinturas vividas dos cofres, cheios de rebuçados e pastilhas e aromatisados das mais finas essencias. Por entre as corbeilles extravasando côres e perfumes, os gitanos de terre-cuite dançavam aos pares, e as pastorinhas de louça com os seus trajos coloridos e os seus rostinhos frescos, pareciam de antemão celebrar a formosa manhã a desabrochar no anniversario do dia seguinte. Como o Arthur ficaria contente, quando ao outro dia abrissem á sua curiosidade, aquelle profuso mundo de brinquedos e gulodices!... E Fernanda, nos bicos dos sapatinhos e sem fazer ruido, arrumava e dispunha tudo, ao lado da mamã, tocando com as pontas dos dedos as cousas, como numa capella, absorta num extasi profundo de sonhos innocentes, como se o seu espirito viajasse por um grande paiz de quinquilharias ideaes e maravilhosas. Quando acabaram a tarefa, a mamã sentou-a no collo, commovida por aquella dedicação fraternal e solicita que tudo queria para presente d'annos do Arthur; beijaram-se ambas, por muito tempo. - É verdade, disse Fernanda, e o chapéo? A mamã foi buscar o chapéo: era um delicioso bijou de palha amachucado á banda, com um ramilhete de myosotis adoravelmente perdido num tufo de gaze fina, tão fina que mal se apertava na mão, parecendo espumar por entre os dedos, como Champagne vertido de uma torneira. A pequenina quiz pô-lo: ficava graciosamente, um pouco tombado sobre os olhos. De sob as abas, em caprichosos rodopios, rebentava a cabelleira loira de cherubim, que adquiria contra a luz transparencias de oiro fino, em quanto uma onda de tule branco ia cingir-lhe o pescoço, como aragens tecidas por mãos de princezas mouriscas, das que fallam os contos do Meio-dia. O desejo de Fernanda era não tirar mais esse pequenino e fresco chapéo, cuja aba tombada enchia de uma sombra humida os seus grandes olhos. Mas era forçoso esperar o dia seguinte, quando fossem para a quinta. A pequenina exigiu que o chapéo ficasse sobre a banca, entre os presentes d'annos do Arthur, descoberto e aninhado na sua onda fôfa de tule branco. Esteve ainda a olhal-o: os myosotis com as florinhas miudas, de uma contextura paciente e nitida, dispostas num forte cacho azul, entre folhas verde baço, davam um encanto ingenuo á copa conica, um pouco extravagante talvez. Visto de lado, parecia um ninho de penugens tepidas, de que os passaritos houvessem partido um minuto antes. De repente a sineta tocou: voltava o Arthur do collegio. Fecharam a porta do gabinete muito depressa, não desconfiasse elle. No dia seguinte, quando lhe mostrassem tudo, dizendo: - ahi tens, é para ti... - que loucuras e que jubilos não commoveriam esse vermelho endiabrado, de que os velhos criados tinham já medo! Apenas o gabinete ficou só, a gatinha trepou para cima da mesa, e pôz-se a mirar tudo, dando passadinhas leves, toda cautelosa pelo meio dos presentes accumulados, cheirando e lambendo aqui e além. Nos seus olhitos garotos, um clarão de malicia ingenua, parecia beber enlevadamente os matizes: farejava os cofres por todos os lados, baixando a cabecita, como quem reflecte. Diante da cathedral o seu pasmo pareceu crescer, porque se deteve de pescoço estendido, a medir a altura das cupulas, de patas firmes nos primeiros degraus da escadaria, com prejuizo de dois devotos de cartão, que esmagou com uma indifferença soberana. Deu com o chapéo de Fernanda enroscado na facha de tule branco, e a passadas lentas foi para elle, com o dorso alto, espiralando a cauda, toda contente do achado. A tarde cahia, e o gabinete carregava-se de sombra. Pela vidraça, a paizagem ganhava manchas sombrias e grandes esbatimentos de um vago picado a pontinhos de gaz rutilante. Subia do bairro commercial e das grandes ruas de transito um tohu-bohu de labutas que esmorecem, e carruagens que se perdem, circulando. Um sino tocava. No gabinete, faziam-se deslocamentos confusos de fórmas e de aromas, e os olhos da gata phosphorescentes, luziam como dois faroes em fluctuação, na penumbra alastrada em torno. A palha do chapelito gemeu: a gata acaba de enroscar-se no ninho da copa, fazendo posição, para dormir. Nunca sentira cama mais macia e mais dôce que naquelle fundo de chapéo forrado de sêda branca, onde o tule enrolado dava uma molleza preguiçosa de cochim, de edredon! Inda porém não tinha cerrado os olhos, e já o irmãosito, dando um salto agil, cahia em cheio sobre a ampla aba do chapéo, amachucando o precioso cacho de myosotis. A coquette então ergueu a cabecinha ironica com um meneio creoulo de amante benevola. De cima da aba curva, como de cima de um muro, pendia a patinha do gato, toda branca e nervosa, desafiando. Essa pata estendeu-se, estendeu-se, e subtil, como num jogo de prendas, deu uma sapatadasita no craneo da femea, retrahindo-se logo. Mas a gatinha parecia querer dormir e aninhou-se de novo no seu fundo de copa, onde a sêda punha a alvura caridosa de uma alcova. A tactica do gato mudou então: rebolando-se lascivamente pelo declive da aba, o marau poude attrahir a si todo o tule da facha livre, que Fernanda enrolára ao pescoço, um momento antes. Uma vez envolto nas ondas de espuma do tecido, entrou a arrastar o chapéo atraz de si, pela mesa fóra. Foi o signal: a gatinha sacudiu rapidamente a somnolencia, espreguiçou-se com uma distensão prolongada de patas e de espinha dorsal, escancarando a goela e distendendo as unhas. Esse movimento largo desenhou vigorosamente o corpinho de fera contente, que desperta. O dorso, de uma alvura singular de arminho, teve um lampejo brusco de scentelha, quando o craneo chato e muito curto, de maxillas ferozes, roçou com um deleite perfido de volupia, as pennugens imperceptiveis das patas, armadas terrivelmente de alfanges curvos. Com um pulo agachou-se na copa do chapéo, como numa caverna, á espreita. O seu olho inquieto fuzilava. Todo corpo encolhido, percorria de pequeninos fremitos de impaciencia, que as orelhas continuavam, imprimindo á cabeça um grande cunho de astucia recalcada. O gato vinha de rastos apagando o som dos movimentos, garrido no seu tule como um pagemzito aventureiro. E á medida que elle vinha, o pescoço da gata, do outro lado da aba, alongava-se, escorregando dôcemente pela sêda do forro. Por fim as patas encontraram-se, e cada qual disputou o tule, ás unhadas, a dente. A facha, que se desenrolava do corpo d'elle acabou em frangalhos nas unhas dos dois. Um golpe desunira porém duas fibras de palha, da aba derrubada. O gatinho metteu a cabecita pela abertura, radiante de maldade, e foi morder o cacho de myosotis. Do seu lado a gata continuou a obra, descobrindo os dentinhos brancos. Mas em breve o destroço se propagou aos presentes d'annos do Arthur, com uma rapidez de saque premeditado. As corbeilles viram-se despojadas das suas cintas de hera, reluzentes e excentricamente recortadas, e dos seus maciços de camelias reaes. Na vertigem do can-can desenfreado, que os dois diabitos armaram por cima da banca, tpdos os objectos leves eram arrojados para a banda num rodopio constante: os gitanos partiram braços e pernas, as pastorinhas ficaram sem cabeça, algumas bocetas violentadas cederam, e foi um destroço geral de natas, especiarias e recheios. Um rebuçado d'ovos ficou pegado á cathedral de Fernanda, obstruindo o portico por onde os devotos de cartão começavam a entrar, envernizados e festivos. E a valsa extraordinaria continuava sempre sem respeito e sem cansaço. Na manhã do dia seguinte, em quanto no pateo o cocheiro punha o landeau, e as carruagens chegavam trazendo os priminhos e as numerosas tias, Fernanda, com uma deliciosa tunica azul céo e um largo collar de marinheiro bretão, foi chamar o Arthur que acabava de vestir-se. - Bons dias, disse ella, beijando-o. Tens alli muitos bonitos, vem vêr. O pequeno não quiz saber de mais; foi ás carreiras abrir a porta, e entrou cheio de avidez, no gabinete onde estavam dispostos os presentes. Ao principio, Fernanda e o irmão entreolharam-se num desolamento indescriptivel, vendo os dois gatinhos abraçados que dormiam tranquillos, no meio das ruinas do soberbo bazar construido na véspera. E tão socegados como se nada lhes pezasse do que haviam feito! - Olha, balbuciou Fernanda sentindo as lagrimas na garganta, estragaram tudo! - É verdade, fez attonito o Arthur. Veio-lhe um impeto de raiva sanguinea contra os dois patifes, que pareciam zombar com os seus tranquillos olhares, da assolação que haviam feito. E com o primeiro chicote que viu, descarregou nos lombos do grupo uma vergastada sibilante, que arrancou um berro ás duas gargantas contrahidas. Diante do esqueleto do gracioso chapéo de palha, tão pittorescamente ornado do seu cacho de myosotis, a pequenita, cruzando as mãozinhas pallidas, de uma esculptura fina e reticulada de veias microscopicas, chorava silenciosamente as perolas de uma dôr serena e de um amor espesinhado de ingratidões - porque amára com paixão os ingratos pupilos. - Seus maus! dizia ella sempre que os via na cozinha, já crescidos, dormitando na mesma cadeira. Mas quasi sempre, a sua mão esquecida e meiga, lhes ia afagar as cabeças somnolentas e chatas, como de dois pequeninos tigres preguiçosos.

F. D'Almeida