Pulo do Lobo

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terça-feira, julho 05, 2005

Alberto Caeiro


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É através da carta enviada por Fernando Pessoa a seu amigo e crítico literário Adolfo Casais Monteiro, em 13 de janeiro de 1935, que tomamos conhecimento da gênese de Alberto Caeiro:
"( Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na gênese dos meus heterônimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)
"Ai por 1912, salvo erro ( que nunca pode ser grande), veio-me à idéia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular( não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato de pessoa que estava a fazer aquilo. ( Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)"
"Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já não me lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, 'O Guardador de rebanhos'. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a 'Chuva oblíqua', de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro ". (PESSOA, Fernando, 1969, p. 697).
O surgimento do mestre Caeiro desencadeia o nascimento de todos demais heterônimos:
"Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a 'Ode triunfal' de Álvaro de Campos – a 'Ode' com esse nome e o homem com o nome que tem. (...) " ( PESSOA, Fernando, 1969, p. 697).
Considerações de Ricardo Reis acerca de Alberto Caeiro
Nos apontamentos soltos de Ricardo Reis, encontramos as seguintes observações sobre o seu mestre:
"...a naturalidade e a espontaneidade dos poemas de Caeiro (...) são, ao mesmo tempo, rigorosamente unificados por um pensamento filosófico que não só os coordena e concatena, mas que ainda mais, prevê objeções, antevê críticas, explica defeitos, por uma integração na substância espiritual da obra." ( PESSOA, Fernando, 1990, p. 197).
" Mas como quem sente a Natureza, e mais nada. / E assim escrevo, ora bem, ora mal, / Ora acertando com o que quero dizer, ora errando, / Caindo aqui, levantando-se acolá, / Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso".
"( Louvado seja Deus que não sou bom, / E tenho o egoísmo natural das flores / E dos rios que seguem o seu caminho/ Preocupados sem o saber / Só com o florir e ir correndo".
Poeta objetivo exprimindo em quatro de suas canções impressões inteiramente subjetivas, todavia, como o próprio Reis esclarece, não podemos dizer que houve erro, já que esses poemas "foram escritos durante uma doença e que, portanto, têm por força que ser diferentes dos seus poemas normais, por isso que a doença não é a saúde".
Notamos que a objetividade do poeta é abrandada em virtude do mesmo estar amoroso, fazendo surgir um pequeno desvio no seu paganismo, já que a idéia, essencialmente pagã, usa, por vezes, um traje emotivo.
Antes de estar amoroso:
"Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender..."Porque quem ama nunca sabe o que ama"."Amar é a eterna inocência, / E a única inocência não pensar...""Pensar incomoda como andar à chuva / Quando o vento cresce e parece que chora mais".
Após estar amoroso:
"Penso em ti e dentro de mim estou completo". / "Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais"."Amar é pensar". / "Penso em ti, murmuro o teu nome: e não sou eu: sou feliz."
Esse "traje emotivo", como diz Ricardo Reis, não acontece abruptamente: nos poemas finais de O Guardador de Rebanhos, já podemos perceber o prelúdio da unidade idéia-emoção:
"As quatro canções que se seguem / Separam-me de tudo o que eu penso,Mentem a tudo o que eu sinto,/ São do contrário ao que eu sou...""Escrevi-as estando doente/ E por isso elas são naturais".
Em O Pastor Amoroso, não temos, em Caeiro, um poeta subjetivo, o que acontece é que o subjetivismo e o objetivismo se confundem, pois ele começa agora a refletir sobre as sensações.
"E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito"."Não sei o que fazer das minhas sensações".
Agora não são apenas sensações, são sentimentos:
"Todos os dias agora acordo com alegria e pena.Antigamente acordava sem sensação nenhuma: acordava".
É ainda Ricardo Reis que nos afirma que a coerência intelectual prepondera sobre a sentimental ou emotiva:
"Meto-me para dentro, e fecho a janela.Trazem o candeeiro e dão as boas noites,E a minha voz contente dá as boas noites."
Caeiro é o resgate do verdadeiro paganismo que o cristianismo fez com que se perdesse:
"Creio no mundo como num malmequer./ Porque o vejo. Mas não penso nelePorque pensar é não compreender... / O mundo não se fez para pensarmos nele(Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...Eu não tenho filosofia: tenho sentidos..."
É o inocente olhar pagão, é o sentir primeiro, sem a contaminação Cristista que insere a pessoa, pelo batismo, em uma cultura. É a reconstrução da essência pagã.
Reis o mais disciplinado de todos os heterônimos e o que mais se aproxima de Caeiro, finaliza seu comentário:
"Falta, nos poemas de Caeiro, aquilo que devia completá-los:a disciplina exterior, pela qual a força tomasse a coerência ea ordem que reina no íntimo da obra". "Exagero, porventura e abuso. Tendo aproveitado aressurreição do paganismo que Caeiro conseguiu, etendo, como todos os aproveitadores conseguido afácil arte secundária de aperfeiçoar, é talvez ingratoque me revolte contra os defeitos inerentes àinovação com que aproveitei. Mas, se os achodefeitos, tenho, embora os desculpe, que osapelidar de tais". (PESSOA, Fernando, 1990, p. 202).
Álvaro de Campos, o poeta das emoções, em suas Notas para a Recordação do meu Mestre, dá-nos uma visão encantadora de Caeiro:
"Conheci o meu mestre Caeiro em circunstâncias excepcionais".(...)"Vejo ainda, com claridade da alma, que aslágrimas da lembrança não empenham, porque avisão não é externa..."A expressão da boca, a última coisa em que se reparava – como sefalar fosse, para este homem, menos que existir –era a de um sorriso como que se atribui em verso àscoisas inanimadas belas, só porque nos agradam - ,flores, campos largos, águas com sol – um sorriso de existir, e não de nos falar.Meu mestre, meu mestre, perdido tão cedo!Revejo-o na sombra que sou em mim, na memóriaQue conservo do que sou de morto..."(PESSOA, Fernando, 1990, pp. 246-247).
Ao mesmo tempo que Pessoa, Reis e Campos, através dos seus comentários sobre o mestre, deixam claro para nós as suas características, traçam também a maneira como eles mesmos pensam:
-Fernando Pessoa "pensa" com a imaginação;-Ricardo Reis "pensa" com a razão;-Álvaro de Campos "pensa" com a emoção;-Alberto Caeiro "pensa" com a sensação.
Poemas de Caeiro – com relação ao conteúdo
Tanto Ricardo Reis quanto Álvaro de Campos colocam-se a par do estilo de Caeiro, contudo vale ainda salientar outros aspectos.
Uma das características marcantes dos poemas de Caeiro é o sensacionismo, manifestando uma visão objetiva das coisas. Em decorrência disso, temos:
-A sensação das coisas tais como são, sentindo tudo da maneira que é:
"Eu não tenho filosofia: Tenho sentidos... / E os meus pensamentos são todos sensações./
Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz na boca".
-O sentir sem pensar que sente:
"Amar é a eterna inocência, / E a única inocência não pensar..."
-A inocência de olhar, eliminando os vestígios de subjetividade:
"Creio no mundo como um malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender..."
-Abolição das fronteiras de tempo e espaço:
"Vê-las sem tempo, nem espaço, / Ver podendo dispensar tudo menos o que vê".
"Mas eu não quero o presente, quero a realidade; / Quero as cousas que existem, não o tempo que os mede"
-A aceitação de todas as desigualdades e injustiças sociais, estoicismo, aceitação da naturalidade da própria natureza:
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,/ Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,/Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno – /Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,/E encontra uma alegria no fato de aceitar – /No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável".
Caeiro se limita a perceber tudo quanto há, todo o fenômeno, sem querer interpretá-lo: é um fenomenologisa puro.
"O luar através dos altos ramos,/ Dizem os poetas todos que é mais/ Que o luar através dos altos ramos / Mas para mim, que não sei o que penso, / O que o luar através dos altos ramos/ É, além de ser/ O luar através dos altos ramos, / E não ser mais/ Que o luar através dos altos ramos."
Caeiro é nominalista, recriando a visão primitiva das coisas pela linguagem:
"Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da natureza,/ Porque há homens que não percebem a sua linguagem,/ Por ela não ser linguagem nenhuma".
Ele elimina de sua visão poética a metáfora e a imagem, pretendendo cingir-se ao objetivismo da pura identidade:
"Cada coisa é o que é".
O panteísmo ametafísico é outro traço marcante em sua obra. Deus é o conjunto de tudo quanto existe, é a universalidade dos seres. A problemática de Deus só tem sentido se Deus for o mundo em que vivemos. É a divinização da natureza.
"Não acredito em Deus porque nunca o vi./ Se ele quisesse que eu acreditasse nele,/ Sem dúvida que viria falar comigo / E entraria pela minha porta dentro/ Dizendo-me, Aqui estou!/ (...)/ Mas se Deus é as flores e as árvores/ E os montes e sol e o luar,/ Então acredito nele.
No seu misticismo naturalista, ele não nega a existência de Deus, nega o falar e o pensar em Deus:
"Pensar em Deus é desobedecer a Deus,/ Porque Deus quis que o não conhecêssemos./Por isso se nos não mostrou..."
Fernando Pessoa diz que Caeiro encara a natureza de um modo metafísico e místico, que é "o puro místico do sensacionismo".
"Se quiserem que eu tenha um misticismo, esta bem, tenho-o. / Sou místico, mas só com o corpo./A minha alma é simples e não pensa./ O meu misticismo é não querer saber./ É viver e não pensar nisso.
A negação da memória, a afirmação do instante também é encontrada:
"A recordação é uma traição à natureza,/ porque a Natureza de ontem não é Natureza./ O que foi não é nada, e lembrar é não ver".
Ele desembrulha-se e torna-se não homem, mas um animal humano, sem pretensões pré-concebidas, contentando-se com a gratuidade da Natureza e trazendo o Universo ao Universo.
"Ainda assim, sou alguém./ Sou o Descobridor da Natureza./Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. /Trago ao Universo um novo Universo / Porque trago ao Universo ele-próprio".
A multiplicidade, o mistério, o devir das coisas:
"A Natureza é partes sem um todo./ Isto é talvez o tal mistério de que falam".
A verdade primordial se explica pela pluralidade da Natureza, que não existe como um todo.
Devia haver adquirido um sentido do 'conjunto';/Um sentido como ver e ouvir do 'total' das cousas/E não, como temos, um pensamento do 'conjunto'; / E não, como temos, uma idéia, to 'total' das cousas./E assim – veríamos – não teríamos noção do 'conjunto' ou do 'total',/ Porque o sentido do 'total' ou do 'conjunto' não vem de um total ou de um conjunto/ Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes".
Utilizando-se do recurso da tautologia, Caeiro, com freqüência, diz a mesma coisa recorrendo a formas diferentes.
"Sei que a pedra é real, e que a planta existe./ Sei isto porque elas existem./ Sei isto porque os meus sentidos mo mostram./Sei que sou real também./Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,/ Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta./ Não sei mais nada. / Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos./ Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas./ Mas é que as pedras não são poetas, são pedras; / E as plantas são plantas só, e não pensadores".
Resumindo, podemos afirmar que Caeiro:
-Não julga, exprime opiniões originárias;-Assume com naturalidade a verdade;-Não tem ciência; ele é a ciência;-Não é pagão; é o próprio paganismo;-É ingênuo e natural, infantil, sem malícia, em estágio de originalidade;-É o homem das sensações em estágio puro.Nele não há transcendência.
Finalizando essas considerações acerca do mestre Caeiro, cabe citar Eduardo Lourenço que diz:
"...só em sonho saímos do espaço inumano que nos cerca. Ele inventou, para poder respirar o irrespirável, as formas óbvias para existir no meio de uma civilização onde só se podia 'ser' não 'sendo'. ( LOURENÇO, Eduardo, 1983, p. 157).
"Pessoa (...) Foi (...) apenas uma sensível alma lusitana terrorizada pela própria audácia e sofrendo como uma danado a visão e a pressão de uma sociedade estruturalmente hipócrita, uma sociedade que se levanta todas as manhãs da cama imaculada onde nunca se passou nada que a perturbasse". (Idem, p. 159).