Pulo do Lobo

Um blog para os apreciadores do silêncio ...

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Localização: Neta, Alentejo, Portugal

sábado, junho 11, 2005

Afinal sempre me casei - Parte I


www.pulodolobo.blogspot.com Posted by Hello


I

Na sua rotina diária Gabriel percorria cerca de 10 minutos de carro até ao Terminal de Barcos do Barreiro. Ainda sob a influência dos vapores do wisky bebido na noite anterior, só quando estava prestes a passar pela bilheteira é que se lembrou que não tinha comprado a senha do passe daquele mês. Com a rapidez que se impunha, e face ao formigueiro suburbano acotovelando-se para comprar as mencionadas senhas, dirigiu-se mecânicamente às dispensadoras automáticas para assim conseguir o bilhetinho que o faria chegar a horas ao seu "mais que querido emprego". Com a pasta no meio das pernas, o jornal acabado de comprar debaixo do braço, e debatendo-se com a panóplia de cartões que premeditavam a queda eis que sente um ligeiro toque no ombro.
Espanto dos espantos, aquela morena com olhar triste, que de há uns meses a esta parte trazia debaixo de olho e que nunca o tinha mirado, encontrava-se ali, junto a si, a oferecer-lhe o desejado bilhete.
Tome, depois logo me dá um ….
Gabriel ainda balbuciou um tímido obrigado mas não mais do que isso.
Chatice, nem aproveitei para meter conversa , agora o melhor é apressar o passo ...
E foi assim , em passo acelerado, que se dirigiu para o Bar do barco onde a misteriosa personagem se encontrava a tomar café. Cerrou dentes e rompendo o aglomerado que se encontrava à entrada do bar, sentido a testorona a comandar-lhe os passos, prostrou-se a seu lado, tendo de seguida murmurado ao seu ouvido um tímido agradecimento.
-Muito obrigado… pela simpatia de há pouco, já não sabia o que fazer.
Não foi nada, deixe lá …
Pelo menos diga-me o seu nome.
Veronica.
Posso pagar os cafés ?, disse Gabriel muito nervoso .
Obrigado. Nao era preciso ....
Ora essa , o difícil foi ganhar coragem para falar consigo.
Como já deve ter reparado, não tenho conseguido disfarçar lá muito bem a forte atracção que sinto por por si e agora que estou aqui a seu lado só penso na melhor forma de ganhar a sua amizade.
Têm algum cartão seu consigo?
Cartão não tenho mas posso deixar-lhe o meu número de telefone .
Perfeito!
E o seu ? disse Gabriel.
Deixe estar assim por ora, eu depois telefono-lhe.
Um abanão forte, sinal que o barco estava prestes a atracar no Cais, impeliu Gabriel para a frente, tendo naturalmente deixado encostar o seu peito aos seios volumosos de Veronica. Que sensaçao aquela . Deixou-se estar e foi então que Veronica , olhando-o nos olhos , suavemente, desceu a mão e acariciou-lhe o sexo como ele nunca pensara ser possível num local público.
Você é bancário, não é?
Como sabe?
As mulheres têm um dedo que adivinha.
A sério, disse Gabriel, já me deve ter visto a entrar no banco.
Já não recebeu resposta pois Veronica tratou de despedir-se circunstancialmente com a desculpa de necessitar de ir apanhar um taxi para o seu emprego. Onde trabalharia ela e o que faria, estas ideias assaltaram de imediato Gabriel. Bem, o melhor é acelerar o passo pois a Gerente tem a mania que é dona do Banco e quando me atraso 5 minutos tenho que a ouvir o dia todo.
Depois de cumprimentar a rapaziada e tomar o café da ordem, Gabriel começou por consultar o seu email "privado", aquele que todos os homens têm e que por uma ou outra razao mantêm fora do circuito familiar. A maior parte era spam , mas , por curiosidade , resolveu abrir uma das muitas selecçoes de perfis compatíveis que as inúmeras empresas de relacionamentos online frequentemente enviam . Era quase um vício, mas inofensivo, pois Gabriel nunca pensara em tornar-se membro deste tipo de sites que ofereciam um sem fim de regalias em troca de uma verba semanal, mensal ou anual. Nao acreditava em nada daquilo simplesmente gostava de acreditar que aquelas raparigaes e rapazes andavam realmente procurando um relacionamento. Mas, naquele dia teve um dos maiores choques da sua vida.
Era ela, dizia-se Catarina, mas a foto , essa nao deixava lugar a dúvidas, era aquela a miúda que o tinha feito sonhar na sua adolescência . Almas gémeas, gostos refinados e uma certa partilha da sobranceria intelectual fruto de uma roda de amigos pouco dada a essas coisas do espírito. Mas o que é que a faria uma "miúda daquelas" a expôr-se assim desta maneira ? Que Gabriel saiba ela casou-se com um colega de Universidade e salvo erro até a tinha visto com uma barriga cheia de felicidade.
"Mulher procura homem, sincero, com vontade de recomeçar uma nova vida," ...
Nao pode ser !
Loira, olhos verdes, estatura média e aparência atlética. OK.
Ah ! Estado civil – Separada.
Fez-se luz.
De imediato , Gabriel, com o intuito de lhe enviar um pequeno cumprimento que a levasse a ler o seu perfil começou a preencher o espaço do seu perfil reservado à sua caracterizaçao e que dado ser um campo aberto permitia um comentário alargado.
"Escrevo estas linhas a pensar em ti. Como sabes, se calhar já te esqueceste, eu continuo a acreditar que tudo o que nos é concedido agora resulta de algo que demos no passado. E que a maturidade, senioridade, ..., nao é mais do que passado vestido de presente.
E, enviou-lhe um ramo de rosas vermelhas em sinal de cumprimento. Passados uns instantes a fotografia de Verónica foi retirada logo depois de o perfil de Gabriel ter sido consultado, certamente por Veronica que se encontrava online.
De imediato e no mesmo espaço Gabriel continuou a escrever, " Nao era necessário tirares a tua foto, porque nunca iria fazer, e, muito menos dizer, algo que te prejudicasse (ainda bem que a gravei a tempo, era estranho nao ter nenhuma foto tua, nao achas?).
Reparei no teu perfil que a literatura continua a preencher parte importante da tua vida. Ainda bem, porque a procura do belo, do etéreo e do múltiplo sao naturalmente apadrinhados pela literatura. Noblesse oblige, n'est-ce-pas ? Achas que já estou descrito ? com 600 caracteres ? só se for para contar o meu último pequeno almoço.
Poderia começar por dizer que sou um jovem homem maduro com uma pequena grande atracçao pela Vida. Naturalmente, aquela que apelamos de bem vivida, onde o fútil e o banal, só emergem após os libertarmos do nosso peso. O requinte e a "malvadez" (as mulheres gostam de chamar-lhe charme) sao outras das minhas características pessoais que muito me têm apoquentado. É inevitável, mesmo tendo lido todos os Manuais de como preservar a vida a dois, como ser um bom marido, etc, etc, nao há estaçao que nao tenha que regar nova Flor. Aparecem murchas, sem brilho, a perder folhas e passado uns tempos eis que se apresentam viçosas e orgulhosas de terem sido oportunamente transplantadas para o meu quintal. É óbvio que as nao posso guardar muito tempo, só o necessário até as devolver à Vida. E perguntas-me tu porquê, porque é que abraço essa profissao de ajudante de jardineiro se a minha vocaçao é a de agricultor ( onde tudo é fruto de trabalho árduo, onde cada estaçao tem as suas sementeiras próprias, onde a contemplaçao nao é uma perca de tempo, onde as raizes sao profundas, e eu respondo-te pela boca do nosso poeta maior "Porque tudo vale a pena quando a alma nao é pequena." Beijo do bibliotecário arrivista que nunca perde a oportunidade de agradecer a quem lhe fez bem. "
De repente recebeu a resposta ao seu ramo de flores. Um beijo online da Catarina, ou seja da Verónica que acrescentava a seguinte pergunta " Quem procuras ?"
"Nao procuro ninguém. Só estou a preencher este questionário maçudo porque te encontrei. Ainda que em formato tipo passe é sempre agradável rever-te. Aliás, o que é que adianta procurar alguém se eu próprio fui achado. Nos Perdidos e Achados, estás a ver ? ... e depois, claro, nunca me entregaram. E assim continuo,...isto nao é queixa, porque para a queixa ter lugar pressupôe-se a existência de um desconforto o que nao acontece no meu caso. Talvez o Hans Castorp soubesse explicar-te melhor a minha situaçao. Depois de algum tempo acostumado ao ar das montanhas , ainda que num sanatório, é dificil voltar a respirar o ar leve da planície. Percebes ? Já em tempos idos falámos sobre estas questoes próprias de quem ainda nao encontrou um rumo ( mas por outro lado aqueles que o encontraram queixam-se que antes nao o tivessem encontrado )de quem tudo questiona e tudo tenta entender. Nao sou dado a aceitar dogmas , doutrinas e até filosofias. Porque será ? Quererei ser mais do que os outros, ou muito simplesmente compreender os outros ? Nao sou eu a pessoa mais indicada (nao ? entao quem será , isto já é influência do politicamente correcto)para me julgar por isso deixo ao vosso critério essa avaliaçao que nao deconstruirei ( o Derrida que me perdoe ). Escrevi estas linhas para que sorrias como só tu sabes."