Pulo do Lobo

Um blog para os apreciadores do silêncio ...

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Localização: Neta, Alentejo, Portugal

quarta-feira, abril 20, 2005

"aleijadinho"


www.pulodolobo.blogspot.com Posted by Hello


Nos princípios de setecentos Lisboa começa a ver chegar os carregamentos de ouro do Brasil. É uma riqueza que se sente.
Uma certa sociedade sabe ostentar os seus bens. Os mais pobres, artesãos e camponeses, não ficam alheios aos sonhos que uma melhor vida pode tornar reais. Os marinheiros que arribam contam histórias das terras distantes donde vem o ouro.
As construções são um reflexo de um pais rico. Em Mafra inicia-se a construção de um grande convento, que servirá de escola a muitos artistas. Alguns partirão depois para outras terras levando conhecimentos e práticas que ali adquiriram.
De Odivelas parte Manuel Francisco Lisboa. Também ele pensa numa vida melhor. No Brasil já o espera o seu irmão António Francisco Pombal. Certamente ali será mais fácil passar de artista a mestre, trabalho é o que não falta numa região que tanto se desenvolve.
Em Ouro Preto, Minas Gerais, a exploração mineira que se iniciara em 1698 é agora uma realidade. Durante muitos anos não há-de parar e em 1728 vão aparecer também os diamantes. Nem tudo o que se extrai é enviado para Portugal, que tolos não são eles...
Há que mudar de nome, Ouro Preto já não é. Em 1711 passará a chamar-se Vila Rica. Boa terra para Manuel Francisco se instalar.
Em 1724 obtém a carta de carpinteiro. É das melhores, pois abrange ofícios vários - entre eles o de desenhar plantas. Em 1730 é já mestre de obras. A Casa da Câmara e a Cadeia de Vila Rica, a capela-mor de Igreja de Castas Altas, são algumas das obras a que está ligado.
É já um homem com alguma importância, tem a sua oficina, os seus operários e os seus escravos. Entre estes Isabel, de origem africana, que terá um filho do seu senhor. O dia em que ele nasce é incerto, o do baptismo também, ou não seja a criança um bastardo, um mulato. No entanto o pai dá-lhe o seu nome: António Francisco Lisboa.
Em 1736 Manuel Francisco casa-se com Antónia Maria, do Funchal. Têm 4 filhos, um deles será padre. Quanto ao António Francisco, cresce como qualquer menino da sua condição. Cedo aprende que terá de se fazer à vida, a bens de herança não terá direito. A oficina do pai é o local onde vai passando o tempo. Vai aprendendo o que por lá se faz - desenho, arquitectura, ornamentos. A escultura e o entalhe parecem atraí-lo mais - assim se ocupa, e um ofício sempre lhe poderá servir para alguma coisa. Conhece também João Gomes Batista, que estudara desenho e gravação de metais em Lisboa, e que trabalha agora na Casa de Fundição de Vila Rica.
Quanto ao resto, aprende com os frades de Vila Rica apenas o essencial: música, latim e, claro! religião.

No Sec. XVIII a influência da Inquisição é ainda muito forte. Aqueles que chegam de Portugal têm-na bem presente - por isso cada qual trata de publicamente exibir o seu rosário...
Em Vila Rica o número de padres não pára de crescer - em 1750 são cerca de 80. É necessário controlar os sítios onde a riqueza é grande, pois sempre se pode tirar proveito da fortuna alheia. Os abusos, os crimes, os pecados, podem ser quase todos redimidos com oferendas generosas. Tudo, ou quase tudo se poderá perdoar com as dádivas a Deus. A Igreja é o centro do mundo.
Organizam-se confrarias e irmandades que zelam pelos interesse dos seus membros, ao mesmo tempo que lhes oferecem protecção. Mas também nelas existe selecção. Na maioria delas, não é admissível a entrada de homem que não seja branco. E branco puro, sem mistura de judeu, mouro ou mulato. Para estes existe a Arquiconfraria dos Mínimos do Cordão de S. Francisco, que não deixará de ser perseguida só pelo facto de admitir homens "pardos".
São estas confrarias que passam as cartas de habilitação para um oficio.
Apesar da sua condição, António Francisco Lisboa obtém a carta de carpinteiro. Sempre lhe vale para alguma coisa trabalhar na oficina do pai. Já pode executar vários trabalhos, e isso é coisa que nunca lhe faltará.
Duas das confrarias de Vila Rica dão oportunidade para se revelarem as capacidades de António Francisco. A Ordem Terceira do Carmo encomenda o projecto da Igreja a Manuel Francisco, a Ordem Terceira de S. Francisco fará encomenda idêntica ao seu filho.
As duas obras serão elogiadas e, na de S. Francisco, quer na fachada lateral, quer no púlpito, são já visíveis as marcas de um autor. Os trabalhos irão suceder-se.
O Barroco, tão em voga na Europa do Sec. XVII, só agora começa a chegar ao Brasil, sobretudo pela mão dos que vêm de Portugal. Mas aqui nos trópicos vai-se diferenciando do europeu, sobretudo em Minas Gerais, onde tanto ouro há.
António Francisco dá às suas obras um estilo próprio, quer no desenho das plantas, quer na talha e na escultura. É a imagem de uma região feita pelas mãos de um artista. As fachadas são enriquecidas, os interiores cobrem-se de talha. É aproximação do rococó, com um cunho mineiro.
Em 1767 morre Manuel Francisco Lisboa. Dois anos mais tarde o filho já não tem mãos a medir. As encomendas sucedem-se. O seu trabalho é disputado entre as várias confrarias - já pode fazer aquilo de que mais gosta - esculpir. Trabalha agora em pedra-sabão. Faz púlpitos, imagens, portas. Por tudo isto lhe vão pagando, e ele bem sabe como gastar o dinheiro...
Não é figura que atraia mulher para casamento - baixo, gordo e mulato - mas tem um filho natural. Da mãe pouco se sabe, apenas que se chama Narcisa, e que o faz andar em tribunais. António Francisco reconhece o filho como seu. Dá-lhe o nome de seu pai.
Há tempo para tudo, para o trabalho mas também para o prazer. A vida boémia diverte-o, gosta de viver. Talvez venha a pagar os desvairos que comete. Não perde uma oportunidade para se divertir como no dia em faz uma imagem de S. Jorge, que é réplica da figura do ajudante do Governador que a encomendara.
Em 1777 António Francisco Lisboa sente já os males da sua doença. De que sofre? Ninguém parece saber ao certo... mas que é grave, isso sente ele. São várias as hipóteses que se põem: escorbuto, sífilis, zamparina... Todas parecem ter origem num facto: a vida de excessos que tem levado. Há mesmo quem diga que tudo se deve à cardina** que terá ingerido para melhorar os seus dotes artísticos.
Certo é que, nesse ano, já não consegue deslocar-se sozinho. Que o diga a Confraria de Nossa Senhora das Mercês e Perdões que já suportou um pagamento aos negros que o transportaram quando foi vistoriar as obras.
A doença irá agravar-se com os anos. De forma lenta e dolorosa, como se dum calvário se tratasse.
Apesar de tudo António Lisboa é bem aceite. Tem obra feita, é respeitado. E não é homem de se expor.
Com o agravamento da doença vê o seu corpo a ficar cada vez mais deformado. Primeiro os pés, mais tarde as mãos. Momentos há em que não suporta as dores. O desespero é tal que chega a mutilar alguns dedos. Mas as mãos, também defeituosas, são o seu instrumento de trabalho. Males piores virão.
À sua fealdade junta-se agora a deficiência física. E há sempre alguns que a acham medonha. António Lisboa tem disso consciência, bem se lembra do dia em que um escravo, acabado de comprar, tenta suicidar-se ao ver o seu novo patrão. A amizade entre ambos nascerá depois.
António Lisboa decide não impor a sua presença. Evita sair durante o dia. Sempre que tem de o fazer, aproveita a madrugada. E para que não vejam as suas mazelas veste roupas que lhe tapem os membros, e chapéu que lhe cubra a cabeça. Dispensa de bom grado que assistam ao seu trabalho. Aos elogios que lhe fazem, responde por vezes com aspereza. É a doença que dói por dentro.
Os bons momentos, vive-os com os seus escravos - Januário, Agostinho e Maurício. Os dois últimos aprenderão as suas artes ao mesmo tempo que o amparam na doença. António Lisboa paga-lhes, transforma-os em seus operários. Januário será sobretudo o seu meio de transporte.
No mesmo ano em que adoece, casa-se o único filho natural que se lhe conhece. Da sua vida pouco se sabe, da nora se falará mais tarde.
Um homem a quem a natureza nada deu, que luta contra a sua doença, trabalhando; que transmite nas suas obras a devoção religiosa e que, de forma lenta, vai ficando estropiado... é uma figura digna de piedade. Quem o diz é o sentimento, ou o sentimentalismo lusitano a vir à tona, caridade. Já não lhe chamam António, mas sim o "aleijadinho" - assim ficará conhecido. Quanto ao seu verdadeiro nome, muitos o esquecerão. É o preço da caridade, é o nascimento de uma lenda.
Mas António Lisboa é lá homem de viver de piedades... Continua a trabalhar, adapta-se à doença. Alguns dedos das mãos já não existem, as pernas já não andam. Desloca-se de burro quando vai longe, às costas de Januário quando vai perto. E cada vez é menos visto. Com o auxilio dos seus operários arranja forma de poder trabalhar. Amarra os instrumentos às mãos, sacrifícios. E o seu mérito de artista é cada vez mais reconhecido. Muitos o afirmam, e disso é prova a deliberação da Ordem Terceira de Sabará em 25 de Novembro de 1781:
"O melhor meio para que estes trabalhos se façam com perfeição e sem alteração segundo os desenhos, é contratar o Mestre e os operários mais capazes de os executar da referida forma, e por esta razão o Reverendíssimo Comissário Superior e os irmãos membros da comissão estão de acordo e em unanimidade que apenas o Mestre António Francisco Lisboa e os operários poderão cumprir com toda a satisfação desejável..."
Mas António Lisboa não se limitará a ficar por aqui. Uma obra maior está à sua espera.

Em meados de setecentos havia chegado de Matosinhos (perto da cidade do Porto) Feliciano Mendes. Durante tempos andou, como outros, na procura de riqueza. Como tantos outros que partiram do Norte de Portugal, levou consigo as suas devoções. Tinha deixado na sua terra uma bonita Igreja - o Nosso Senhor do Bom Jesus de Matosinhos e as suas capelas dos Passos.
Também em Braga, no Minho, se construía um grande santuário dedicado ao Bom Jesus. Começavam as grandes romarias em Portugal...
Feliciano Mendes sobe um dia ao morro do Maranhão, junto a Congonhas do Campo. Lá no alto, o homem está mais perto de Deus. Quer construir aí um Igreja em devoção do Senhor do Bom Jesus de Matosinhos. Para isso doa toda sua fortuna. Quando morre, em 1761, a Capela está quase pronta. O culto já está divulgado, e os romeiros não param de deixar as suas esmolas. Há que aplicar o dinheiro. A confraria decide construir um santuário imponente. Também ali haverá os Passos. E um adro. E um grande artista a fazê-lo.
Em 1796 António Lisboa é contratado para fazer a execução das estátuas do santuário, cerca de 60, obra grande. Nem todas poderá esculpir. Mas pelo menos orienta os trabalhos. São precisos muitos operários. Melhor é instalar uma oficina em Congonhas. Para muitos será uma escola, afinal está ali um mestre. As obras irão durar alguns anos.
Em frente à igreja, um adro, o Largo dos Profetas (serão doze). Destes se encarrega António Francisco. Não são figuras estáticas. Distribuem-se em volta do largo como se de uma assembleia se tratasse. É deles que brotam as palavras, são eles os grandes oradores. António Francisco dá-lhes expressão, os gestos, as formas, as particularidades também. Os pés são grandes (para alguns, sinónimo de firmeza). As mãos mostram os ossos que vincam a pele e... um polegar "estranho", defeituoso até (é o reflexo dos seus males, pensarão outros mais tarde quando, ao olharem um Profeta, nele virem um auto-retrato de António Francisco).
O Mestre trabalha ainda nas Capelas dos Passos. Exprime o sofrimento de um Cristo. Também ele sofre com a morte de Agostinho Angola, era mais do que um escravo - era um amigo.
Talhada em cedro, mostra o realismo da Última Ceia. Mas tão real, que alguns dos passantes cumprimentam, julgando tratar-se de pessoas vivas...
Enalteceu a fé, mostrou mérito mas, quando regressa de Congonhas do Campo, António Francisco vê o seu sofrimento agravar-se. Vai ainda trabalhar no altar mor da Capela da Ordem Terceira de Sarabá. Mas já lhe chamam o "Aleijadinho" quando comentam as contas do trabalho apresentado. António Francisco Lisboa já não é. Esquecem o mestre, comentam os dinheiros...
Em 1810 trabalha ainda na talha da Igreja de Vila Rica (Ouro Preto). Desta vez é o seu ex-aluno Justino que firma o contrato. Eis o mestre a trabalhar para o aluno... As deslocações são já tão difíceis que se instala junto da Igreja. Será talvez a sua última obra ... e ainda por cima mal paga.
Um noite, Justino decide ir visitar a família. Não será visita breve. Quanto ao "Aleijadinho", nada lhe diz, que fique só, que se arranje. António Lisboa vê-se obrigado a regressar. Já não é homem de viver sozinho. Joana Araújo Correia, a nora, leva-o consigo. É parteira. Quem ampara gente que chega ao mundo, também há-de saber amparar na partida.
Durante dois anos António Lisboa não pode sequer levantar-se. Trabalhar, muito menos. Já não vê. Fala consigo. Dos tempos bons, dos outros que o não foram. E sobretudo da traição de Justino que nunca mais lhe apareceu para acertar contas. São coisas que não se perdoam a quem tanto se deu. Resta-lhe a fé e as tábuas onde está deitado.
Joana jamais o abandonará. Mas a dedicação da nora não lhe basta para aliviar tão grande sofrimento.
Morre no dia 18 de Novembro de 1814. António Francisco Lisboa é sepultado na Igreja de Nossa Senhora de Conceição. Aos seus nada deixa, ao mundo deixou muito.