Pulo do Lobo

Um blog para os apreciadores do silêncio ...

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Localização: Neta, Alentejo, Portugal

quarta-feira, março 23, 2005

Ostern 2005


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A cegueira do desenvolvimento ofende a inteligência humana repetidamente . Os homens, perdidos nos néons, enganam-se e mascaram as suas angústias. Os Céus , quebrados, já nao trazem boas novas ; os cinzentos , que predominam , aclaram a noite e mergulham o dia na monotonia . Ao menos que chova ... e que a família se mantenha unida e com saúde.

segunda-feira, março 21, 2005

Abel Salazar


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Nasceu em 19 de Julho de 1889, em Guimarães, filho de Adolfo Barroso Pereira Salazar e Adelaide da Luz Silva Lima Salazar.
Por dificuldade em alugar casa onde se instalassem, os pais foram viver temporariamente para o Hotel do Toural, logo que casaram.
Ali ocuparam um quarto e posteriormente dois, tendo sido num desses quartos, que Abel Salazar deu o primeiro vagido, filho primogénito de uma fratria de três filhos.
Seu pai era secretário e bibliotecário da Sociedade Martins Sarmento e professor de Francês na Escola Industrial Francisco de Holanda.
Colaborador da «Revista de Guimarães» nos seus primeiros números, foi coordenador do importante Catálogo da Biblioteca Pública de Guimarães editado em 1888 e, em 1892, assumiu sozinho a coordenação do Catálogo Suplementar da mesma biblioteca.
A eliminação da disciplina de Francês dos curricula escolares em Guimarães parece ter sido a causa principal da forçada saída de Adolfo Salazar para o Porto, onde faleceu a 1 de Janeiro de 1941, com 84 anos de idade.

O ESTUDANTE

Em Guimarães, Abel faz os seus estudos primários, sendo considerado um bom aluno e tendo chegado a ser premiado, algumas vezes.
Faz os estudos secundários também em Guimarães, no Seminário-Liceu, onde tem como condiscípulo Manuel Gonçalves Cerejeira, futuro Cardeal Patriarca e amigo íntimo de um homem contra quem Abel Salazar sempre há-de lutar e que, por estranha coincidência, usa o mesmo apelido – Salazar. António de Oliveira, beirão, rural, político e ditador.
Por mudança dos pais para a cidade do Porto, passa a frequentar o Liceu Central do Porto, de S. Bento da Vitória, onde ingressa em 30 de Setembro de 1903 e onde se mantém até à conclusão da 7.ª classe de Ciências, em 1906-7.
Ingressa seguidamente na Academia Politécnica do Porto, onde faz os preparatórios necessários para o acesso a Medicina.
Em 1909, ingressa na Escola Médico-Cirúrgica. Contrariado. Queria ser engenheiro civil. Não será por isso que irá ser mal sucedido.
A partir de 1913, é nomeado 2.º Assistente de Anatomia Patológica e depois primeiro assistente provisório de Clínica e escreve diversos trabalhos sobre a morfologia e anatomia comparada do córtex, para o que se obriga a frequentar as duas instituições portuenses ligadas às doenças mentais – o Hospital Conde Ferreira e o de Magalhães Lemos.
Nesses trabalhos formula, pela primeira vez, uma teoria anatomo-psicológica sobre o funcionamento do sistema nervoso.
Apesar da contrariedade inicial, faz um curso brilhante que conclui em 1915, com uma Tese intitulada «Ensaio de Psicologia Filosófica»; receberá do júri a classificação máxima.

O MÉDICO E O PROFESSOR

Concluído o curso, em 1915, é convidado por alguns dos seus mestres, nomeadamente Luís Viegas e Fraga de Almeida, a ingressar no magistério universitário. Recusa.
Concorre posteriormente, por decisão sua e não por convite, a uma vaga na cadeira de Histologia entretanto posta a concurso.
Conseguido o lugar, inicia o curso de Histologia de 1916-17, com uma notável lição de abertura onde expõe os problemas fundamentais da biologia, de uma forma considerada de grande originalidade, nessa altura.
Em 14 de Maio 1917, é nomeado professor extraordinário, de Histologia e Embriologia, por distinção, e em 9 de Julho desse mesmo ano é nomeado professor ordinário.
Episodicamente rege ainda a cadeira de Fisiologia.
Fundador e Director do Instituto de Histologia e Embriologia, em 1919.
É aí, nesse modestíssimo centro de estudos, que apesar de mil contrariedades, de que a insuficiência de material e a ridicularia das verbas são apenas uma parte, concebe e realiza uma série de notáveis trabalhos de investigação, de que se destacam as pesquisas relativas à estrutura e evolução do ovário.
Introduz concepções científicas próprias sobre a atrésia do folículo de Graaf, estabelece as bases da evolução pós-fetal do ovário e descreve os seus tipos principais.
Enquanto não é compulsivamente afastado da Faculdade, mantém o Laboratório de Histologia permanentemente aberto aos alunos, de dia e de noite.
Representa a Faculdade de Medicina do Porto em numerosos congressos e visita estabelecimentos científicos e artísticos em quase toda a Europa Central e do Sul.
Mas o cientista é também um professor voltado para processos didácticos inovadores.
Defendendo a prioridade da educação sobre o ensino, opõe ao saber livresco o desenvolvimento da observação, o convite à reflexão e à iniciativa pessoal, como uma outra forma de alcançar o conhecimento, pela investigação.
O magistério de Abel Salazar está aberto ao diálogo com o aluno, visando despertar o entusiasmo criador.
Desenvolve métodos para estimular a inquietação científica dos discípulos, procurando desenvolver as qualidades intelectuais e humanas de cada um. Ensina-os a serem críticos em face do conhecimento estabelecido, porque sabe bem como muito dele era transitório.
Defende o autodidactismo, a supressão da avaliação quantitativa e a redução ao mínimo da intervenção do professor na aprendizagem.
Publica 116 trabalhos científicos.

O INVENTOR

Em 1920, inicia novos métodos de técnica histológica, dos quais se destaca a técnica tano-férrica ou «método Salazar», como passa a ser mundialmente conhecida em todos os laboratórios de biologia microscópica.

O PERSONAGEM NA PRIMEIRA PESSOA

Comecei a minha vida universitária na Universidade do Porto, quando não existia ainda vida científica.
Iniciei a minha actividade no meio de grandes dificuldades, sem laboratório, sem recursos e sem bibliografia.
Organizei primeiro um pequeno laboratório de Histologia que desenvolvi, pouco a pouco, e fiz os meus primeiros trabalhos sobre o ovário da coelha, nestas circunstâncias.
Organizei um novo Instituto, mas sempre com grandes dificuldades materiais, devido à exiguidade dos subsídios.
Esta obra, embora modesta, chamou a atenção dos meios científicos e encontra-se citada em diversas revistas, tratados, manuais e resumos da especialidade.
Fundei também, com Athias e da Costa, os Arquivos Portugueses de Biologia, de que sou ainda um dos directores.
Apresentei também trabalhos pessoais no Congresso de Lyon, Nancy, Turim, Liège, Lisboa, e nas Reuniões da Sociedade de Biologia.
Trabalhei no Laboratório do Prof. Champy, em Paris, durante o meu exílio. Além dos trabalhos científicos, fiz na Universidade cursos sobre a Filosofia da Arte e desenvolvi um sistema de Filosofia que acabo de constatar, com satisfação, ser bastante próximo da Escola de Viena.
Foi o desenvolvimento deste sistema filosófico que, teria desagradado à Ditadura e ao Catolicismo, e terá sido a causa principal da minha revogação. Quer dizer, oficialmente, ainda não conheço a causa da minha revogação; particularmente, sei que a causa principal foi o sistema filosófico em questão.
Esclareço que nunca fui um político; toda a minha vida me ocupei unicamente da actividade intelectual.

E NA TERCEIRA PESSOA
Bento Caraça diz que é torrencial o génio de Abel Salazar. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Do cientista, escreveu o Prof. Alberto Saavedra: «Quem não privasse com Abel Salazar, julgá-lo-ia, à conta do seu aspecto fechado, carregado, um homem seco, duro, avesso a expansões, a jovialidade, a efusões.
No trato íntimo, porém, Abel Salazar era outro: irradiava gentileza, afabilidade, prestabilidade, a todos atendendo e servindo, sem afectação ou prosápia.
Talento e cultura, de mãos dadas, faziam dele um conversador extraordinário. Com a mesma facilidade e segurança focava problemas de Ciência, Filosofia, Estética, Literatura ou Sociologia.
Dessas esferas, baixava ao trivial, ao quotidiano, glosando sucessos ou figuras que, por momentos, entretinham a sua veia humorística....
Pelo seu inconformismo, rebeldia, luta pela Liberdade e pela Justiça, e assim lutar por um mundo melhor, Abel Salazar aliciava facilmente a juventude.
Bento Caraça, costumava chamar torrencial ao génio deste homem de espírito perdulário.
Era uma personalidade multifacetada que personificava bem a frase que lhe é atribuída – Médico que só sabe de Medicina, nem de Medicina sabe.
Um século antes, um outro português, Ribeiro Sanches, médico distintíssimo, conhecido em todo o mundo, escrevera algo semelhante no seu «Método para aprender e estudar a Medicina»: – Nenhum médico foi célebre na sua arte se não teve o entendimento alimentado com o estudo das humanidades.
E também ele se interessou pela educação da juventude, tendo escrito as «Cartas sobre a Educação da Mocidade», onde falava do reino cadaveroso que mais não era do que o atraso científico e intelectual, a ausência de ideias e projectos, a retórica, o discurso redondo e vazio que dá para tudo.

O ARTICULISTA
Abel Salazar aglutina jovens que se opõem ao fascismo do Estado Novo. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Ainda no Liceu de Guimarães, com um pequeno grupo de companheiros, publica um jornal escolar republicano de que saem dois números: o Arquivo.
Na Academia Politécnica do Porto, relaciona-se com vários elementos da Nova Silva e do Grupo ABC.
Pertence assim à notável geração que, com generosidade e ambição, proclama a liberdade «sem servilismos de programas, de escolas ou de dogmas», lema da revista portuense Nova Silva.
Fundada em 1907, por Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Álvaro Pinto e Cláudio Basto, com orientação anarquista e anti-clerical, ideologia dominante no escol estudantil da época.
Acompanhando essa ideologia, Abel Salazar subscreve em 1907, uma Representação de Estudantes do Porto contra um projecto franquista de limitação da liberdade de imprensa, publicada pelo Mundo, e pouco depois, em Abril, adere à greve académica.
Os jovens que Abel Salazar aglutina à sua volta, têm todos interesses culturais e opõem-se firmemente à tendência do Estado Novo, que em tudo procede de forma concordante com os regimes totalitários.
Esta tendência é claramente evidente na exaltação do chefe e na tentativa de penetração nos meios académicos pela primeira organização de carácter fascista – a Acção Escolar da Vanguarda.
Uma grande parte desses resistentes sente-se atraída pelo Comunismo que promete Paz e Justiça Social.
O Sol Nascente, quinzenário de Ciência, Arte e Crítica, torna-se então, verdadeiramente, a «sua» revista.
Abel Salazar, embora sem imposições, orienta a revista e assume um papel conciliador entre as tendências anarquista e marxista do grupo juvenil.
Abel Salazar pretende estimular o ambiente cultural do Porto, não só através desta revista, que tenta competir com o jornal O Diabo, publicado em Lisboa, mas também com outras iniciativas dirigidas aos novos.
No Povo do Norte, na Ideia Livre, na Gérmen, no Notícias de Coimbra, numa primeira fase e, depois, numa segunda fase, no Diabo, no Trabalho, na Síntese, na revista socialista Pensamento e na Seara Nova.
Formula, numa série de artigos, uma explicação histórico-organicista da Crise da Europa e aplica ao domínio das ciências humanas a matriz psicossomática da caracterologia de Kretschmer.
Colabora nos seguintes jornais e revistas: Afinidades, Povo do Norte, Ideia Livre, O Distrito de Beja, O Primeiro de Janeiro, Seara Nova, Síntese, Esfera, Vida Contemporânea, Revista de Ciências Médicas e Humanismo, Revista Pensamento, Liberdade, Sol, Democracia do Sul, Voz da Justiça, Foz do Guadiana, O Trabalho, Sol Nascente e O Diabo.

O ARTISTA

Em 1915, participa na Exposição dos Humoristas e Modernistas que se efectua nos Jardins de Passos Manuel. Os seus 47 desenhos expostos merecem o elogio unânime da crítica.
No ano seguinte, expõe no Palácio da Bolsa com um grupo denominado Os Fantasistas.
Em Janeiro de 1922, expõe na Misericórdia do Porto, com Cerqueira Machado, e, dois anos depois, em Lisboa, na Sociedade Nacional das Belas Artes, com agrado geral da crítica.
Em 1938 e 1940, efectua em Lisboa e no Porto grandes exposições individuais que provocam grande e generalizada admiração.
Do artista, diz o pintor Júlio Pomar: «A primeira constatação a fazer perante a obra plástica de Abel Salazar é a do seu altíssimo interesse como documento humano; é, por assim dizer, a presença do homem».
Os seus quadros de mulheres do Porto, no esforço de trabalho árduo, os seus retratos, como os de Camilo Castelo Branco e de Guerra Junqueiro, ficam célebres.
A sua obra plástica é tocada de um humanismo profundo e duma fecundidade prodigiosa, nos mais diversos géneros.
Não é um pintor de «atelier»; prefere pintar a figura humana, onde ela mais se mostra e agita - na rua.
É também um pintor da mulher. Pinta as costureiras e as caixeiras, mas também as elegantes, as coquettes.
Mas também, e sobretudo, as mulheres em cena de trabalho, em armazéns na Ribeira ou nas descargas dos batelões em Miragaia.
Repete este tema mais do que os outros, pelo que alguns o consideraram «um dos mestres que desencadeou o Neo-Realismo», uma vez que o trabalho árduo das mulheres era uma das flagrantes condições de desarmonia social.
José Augusto França atribui a Abel Salazar um lugar de precursor do movimento neo-realista, ao mesmo tempo que o condena a uma «situação amadorística».
Essas mulheres, descalças, com lenços na cabeça, blusas amplas, saias enroladas na cintura, sugerindo corpos vigorosos e perfeitos, são o tipo de beleza de mulher que Abel Salazar nos deixa.
Essas mulheres nada têm que ver com as deformações, intencionalmente expressivas de servidão e desgraça, dos pintores neo-realistas portugueses, na sequência do manifesto de Vespeira, de 1945.
Qual homem do Renascimento, Abel Salazar expressa o seu extraordinário talento sob diversas formas, das quais se evidenciam as Artes Plásticas.
A obra de Abel Salazar revela-se em diversas áreas e técnicas, desde o desenho, a caricatura e o óleo, passando pelo retrato, paisagem e pintura mural.
No domínio da gravura, a realização é notável na prática das suas modalidades, com relevo para as águas-fortes, de elevada qualidade.
Tenta a escultura mas dedica-se depois, com carácter de grande originalidade, aos cobres martelados.
Com uma execução pessoal, repuxando e combinando a acção dos ácidos com o fogo, dá, aos seus característicos nus femininos, uma nova sensualidade.
Os pratos de cobre que Abel Salazar cria são peças que despertam um fascínio incomparável.
Abel Salazar é uma personalidade inconfundível. Caracterizam-no, essencialmente, o inconformismo e a ânsia de liberdade.

O ESCRITOR

Uma das facetas do seu engenho é a literatura de viagens.
No ensaio «O que é a Arte?» rejeita um objectivo panfletário na concepção artística, afirmando: «não se faz Arte por decreto nazi, fascista ou comunista».
De influência naturalista, a obra de Abel Salazar, pelo dramatismo e livre expressão, evolui para uma forma original de modernidade.
Publica os seguintes livros: Ensaio de Psicologia Filosófica, Uma Primavera em Itália, A Ciência e o mundo actual, Digressões em Portugal, Paris em 1934, Recordações do Minho Arcaico, O que é a Arte?, A Crise da Europa, Um Estio na Alemanha, e Henrique Pousão.
Publica as seguintes separatas: A Posição Actual da Ciência, da Filosofia e da Religião, A Posição Actual da Filosofia e da Religião, A Socialização da Ciência.

O POLÍTICO

Durante o exílio voluntário, ao lado de Cogniot, Prenant e Wallon, participa nas actividades antifascistas da Union Rationaliste e na Internationale des Travailleurs de l' Enseignement.
Subscreve juntamente com eles um manifesto contra a Ditadura portuguesa e contra as prisões em Portugal.
Envia para a redacção do Liberdade, diversos pacotes de panfletos e literatura subversiva, mas não tem notícia de que tenham sido recebidos.
Nesse tempo, quem manifeste oposição ao regime é apelidado de comunista.
Abel Salazar nunca pertenceu a esse partido, ataca o dogmatismo e os totalitarismos de esquerda e de direita, as utopias exclusivamente individualistas e colectivistas.
Como afirma ao seu grande amigo Prof. Alberto Saavedra, não é comunista, nem sequer está interessado numa acção política partidária.
Não há indicação de ter pertencido ao Movimento de Unidade Anti-Fascista.
Apenas no despertar da consciência cívica que foi o M.U.D. (Movimento de Unidade Democrática), em 1945, o cientista concede ao jornal República uma entrevista e faz uma conferência em Matosinhos.
Abel Salazar, figura representativa da cultura portuense, não tem a tentação de aderir ao Partido Comunista, como grande parte dos escritores e artistas desse tempo. Mas o partido, adopta-o.
Em Maio de 1935, Abel Salazar é demitido de professor catedrático de Histologia da Faculdade de Medicina do Porto, sob pretexto de «influência deletéria da sua acção pedagógica-didáctica sobre a mocidade universitária».
É-lhe recusada a autorização de sair do país e mesmo de frequentar a biblioteca da sua Faculdade.

O EXÍLIO

A acção do irreverente professor desperta a repressão da Censura, provoca ataques da imprensa situacionista e a proibição de tratar em público matérias que não sejam estritamente científicas.
O cientista reage, exilando-se voluntariamente em Paris, para onde parte em 7 de Março.
Na cidade francesa trabalhará no Laboratório do Prof. Champy, prestigiado anatomista francês.
Regressa ao Porto em fins de Agosto de 1934.
Em 1935, depois de ser demitido da Universidade, procura sair novamente do país, desta vez aproveitando um convite do British Council.
A saída ser-lhe-á recusada, como recusada lhe será também a solicitação que faz para frequentar a biblioteca da sua Faculdade.

O MAÇON

Abel Salazar não pode deixar de se opor à ameaça nazi-fascista e aos seus imitadores internos, insistindo numa campanha de pensamento livre.
É então que em 6 de Julho de 1933, ingressa na loja maçónica portuense «Lux et Vita», uma das lojas do Grande Oriente Lusitano Unido.

O POLEMISTA

Polémicas de Abel Salazar com Adolfo Casais Monteiro e António Sérgio. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo?

Envolve-se numa dura polémica com Casais Monteiro e António Sérgio, em 1938, sobre o problema da divulgação cultural.
Casais Monteiro, de modo directo e frontal, critica o mentor dum largo sector juvenil, considerando que os ensaios de Abel Salazar «raramente são acessíveis senão a uma reduzidíssima minoria, não por dificuldade própria dos assuntos mas por falta de método, redacção apressada, dispersão, e falta de desenvolvimento das ideias expostas».
Abel Salazar, embora preze muito a sua missão divulgadora, reage como verdadeiro cientista a esta crítica.
«É exacto, por exemplo, que alguns dos meus artigos não foram suficientemente revistos, que não têm uma unidade perfeita de desenvolvimento, que são, por vezes, aqui e além excessivamente condensados, que o assunto me apaixona e arrasta para fora do campo da vulgarização, que alguns desses artigos flutuam indecisos entre a vulgarização e o trabalho original, que um certo nervosismo se reflecte neles...», escreve então.
No entanto, numa polémica com António Sérgio, também a propósito dum excesso de entusiasmo por uma teoria - desta vez o Neo-Positivismo da Escola de Viena - e, estando em causa o conceito de divulgação e a sua prática, Abel Salazar já não mantém a mesma isenção nem a autocrítica dignificante.
Agora, o interlocutor é também muito diferente. Experimentado e duro polemista, mentor não só dum sector juvenil, mas duma larga e importante camada de intelectuais.
A polémica representa divergentes orientações das duas personalidades em causa, com grande influência dos elementos que incitam uma e outra.
É um acontecimento importante e complexo que se alonga e alastra para o Diabo e a Seara Nova.
Mas o que sobretudo ressalta no Sol Nascente, é o antagonismo pessoal lamentável, de que o título de um dos artigos – «O Bluff António Sérgio» – é exemplo de chocante exagero.
Posteriormente, mantem correspondência frequente com o Abade de Baçal, não em estilo polémico, mas antes como saudável troca de ideias e posições.
Numa dessas cartas, pode ler-se - «Não há diferença alguma entre o crente e o não-crente, entre o ateu e o teísta – o que parece um paradoxo, e o que é, no entanto, a realidade pura.
Os próprios – Teísmo, Ateísmo – não são, no fundo, senão duas formas diferentes de definir o mesmo religiosismo indefinido: tal como se um artista pintasse em claros e outros em escuros, o mesmo estado emotivo.
Um é uma reacção positiva, a outra é negativa, mas ambas geradas pelo mesmo fenómeno.
Posto isto o paradoxo é este: os homens divergem e batem-se – até ensanguentar a História! – não pelo que sentem de comum, mas pelas diferenças irredutíveis das múltiplas formas de definição.
Porque a realidade, para eles, reside, não no pensarem comum, mas na sua definição: e por isso eles batem-se por esta definição, como se fosse pela realidade e pela verdade».

A PAUSA

Entre 1926 e 1931, depois de 10 anos de excessivo trabalho, está afastado da actividade profissional, por doença do foro psíquico.

O RECONHECIMENTO

Abel Salazar falece em Lisboa em 29 de Dezembro de 1946.
O corpo segue para o Porto, mas o préstito funerário é desviado pela polícia política, para não passar por Coimbra.
Chega de noite ao Porto, seguindo logo para o Cemitério do Prado do Repouso, onde a urna ficou depositada.
No dia seguinte, realiza-se o funeral, acorrendo ao cemitério um grande cortejo, sem féretro, onde uma multidão, formada por oposicionistas de diversas vertentes, lhe presta homenagem.
Discursam o republicano histórico Dr. Eduardo Santos Silva e o Prof. Ruy Luís Gomes que, seguidamente, é preso.
No seu funeral encontram-se portugueses de todas as condições, numa verdadeira consagração nacional.
O nascimento da Casa-Museu Abel Salazar, em S. Mamede de Infesta, deve-se à acção de um grupo de intelectuais e especialmente do Prof. Alberto Saavedra. Tocados com a morte de Abel Salazar, logo no dia seguinte à sua morte, lançam a ideia da sua criação, por lhes parecer a melhor homenagem que podiam lhe prestar.
No dizer dos signatários, seria uma forma de corporizar o sentimento que a sua morte e o sentido humano da sua obra causaram em todo o povo português.
Nesta Casa-Museu estão expostas as variadas expressões da Arte Viva, marcadamente pessoal, profundamente humana e plena de beleza, de Abel Salazar.

Carta a V. Nemésio


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Talvez que o anjo esquecido,
O anjo da poesia,
Se tenha de mim perdido
Sem reparar que o fazia...
Por isso me faltam asas
E me sobejam as penas
De um desejo inalcançado:
Que eu gostava de voar
Até ao anjo perdido
O anjo de mim esquecido,
Que por mim é tão lembrado.
Ai se eu tivesse voado
Aonde queria voar
Não estava agora a rimar
Versos de asas cortadas.
Voava junto de si
Assim fico aonde me vê
Mesmo pregadinha ao chão
Com asas de papelão
E sem entender porquê.
Pois a uns faltam-lhe asas
Mas por ter asas cortadas
Sofrem uns e outros não?
Eu tenho sofrido muito
Nos meus voos ensaiados
Que ao querer sair do chão
Ficam-me os pés agarrados,...
E por falar dos pés
Com versos de pés quebrados
Perdoe lá a quem os fez
Pelo mal dos meus pecados
Só os fiz por timidez
Que tenho em me dirigir
A quem tem por lucidez
Razão para distinguir
O bom e o mau Português.
Assim à minha maneira
Aqui venho responder
Desta forma tão ligeira
Que a sério não pode ser!

Amália Rodrigues

sábado, março 19, 2005

Hamburg Hafen


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O nosso Vasco da Gama tem lugar de destaque em Hamburgo.

Quase


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Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tude se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim...
-Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

M. Sá Carneiro

Düsseldorf hafen


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sexta-feira, março 18, 2005

Sejamos simples


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Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...

Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

A. Caeiro

Esperança


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"Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.

Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.

E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem"

quinta-feira, março 17, 2005

A concha


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A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés,a sonhos e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda,vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro,e escadarias
Frágeis,cobertas de hera,on bronze falso!
Lareira aberta ao vento,as salas frias.

A minha casa...Mas é outra história:
Sou eu ao vento e à chuva,aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

V. Nemésio

terça-feira, março 15, 2005

Estátua


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Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, --- frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado...

Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.

C. Pessanha

Olhos tristes


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Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes,os tristes,
tão fora de esperar bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

J.R.Castel-Branco

segunda-feira, março 14, 2005

Düsseldorf


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Por estas bandas, ao fim de semana, os cidadaos reunem-se e, em equipas, vao apanhar o lixo depositado à beira das estradas. Nao se admire que, no caso de ter deixado cair algum papel no chao, alguém o apanhe e lhe pergunte se é seu e se nao vai mesmo precisar dele ...
Como é óbvio os portugueses aqui residentes também alinham pelo mesmo diapasao.

Como é diferente a situaçao em Portugal (especialmente nos centros urbanos). Cidadania precisa-se ...

Álcool


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Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo
--- Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de oiro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?

Nem ópio nem morfina.
O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante ---
Manhã tão forte que me anoiteceu

M. Sá Carneiro


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sábado, março 12, 2005

Da droben auf jenem Berge


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Da droben auf jenem Berge,
Da steht ein feines Schloß,
Da wohnen drei schöne Fräulein,
Von denen ich Liebe genoß.

Sonnabend küßte mich Jette,
Und Sonntag die Julia,
Und Montag die Kunigunde,
Die hat mich erdrückt beinah.

Doch Dienstag war eine
FeteBei meinen drei Fräulein im Schloß;
Die Nachbarschafts-Herren und -Damen,
Die kamen zu Wagen und Roß.

Ich aber war nicht geladen,
Und das habt ihr dumm gemacht!
Die zischelnden Muhmen und Basen,
Die merkten's und haben gelacht.

H. Heine

Horas mortas


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O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca!
E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

C. Verde

jump of the wolf


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sexta-feira, março 11, 2005

No Rossio


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Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo, nenhuma alma há tão solitária como a minha – solitária, note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da minha grande ternura e bondade, entrou no meu carácter um elemento de natureza inteiramente oposta, um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena acção interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena acção externa, a sua manifestação. Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor, destrinçar, os elementos que constituem o meu carácter, pois a minha curiosidade acerca de tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu carácter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.

F. Pessoa

quinta-feira, março 10, 2005

Começaram as nomeaçoes ...


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Um só momento


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Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu.
Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.

F. Pessoa

terça-feira, março 08, 2005

Sophie Scholl


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É sempre agradável constatar (de novo) que, na Alemanha nazi, também houveram alemaes que nao se deixaram inebriar pela cegueira nacional socialista e tudo fizeram para , através de uma resistência passiva, minar o regime por dentro. O filme mais recente sobre o movimento Rosa Branca e que incide especialmente sobre Sophie Scholl remete-nos para o primado da Consciência, o que, dadas as circunstâncias, se pode considerar heróico.

Lugar Lugares


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Era una vez um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno a ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. A parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo - diziam. E depois amavam-se depressa, e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrivel e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza. E então a gente ama isto, porque a gente é humana, e amar é bom, e compreender, claro, etc. E no tal lugar, de manhã, as pessoas acordavam. Bom dia, bom dia. E desatavam a correr. É o meu inferno, o meu paraíso, vai ser bom, vai ser horrível, está a crescer, faz-se homem. E a gente então comove-se, e apoia, e ama. Está mais gordo, mais magro. E o lugar começa a ser cada vez mais um lugar, com as casas de várias cores, as árvores, e as leis, e a política. Porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco - e que fizeram da dignidade humana? As reivindacações são legítimas. Não queremos este inferno. Dêem-nos um pequeno paraíso humano. Bom dia, como está? Mal, obrigado. Pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta. E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e nosso filho há-de ser alguém na vida. E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem. E era intolerável. Ouvimos dizer que numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e água podre. Mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico - batiam ali e resvalavam. E então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro como a luz do deserto, e aquilo não era humano - diziam as pessoas. Temos medo - pensavam. E o ruído delas caminhava para trás, e as casas amorteciam-se ao pé dos jardins, mas é preciso continuar a viver. E havía o progresso. Eu tenho aqui, meus senhores, uma revolução. Desejam examinar? Por este lado, se fazem favor. Aí à direita. Muito bem. Não é uma boa revolução? Bem, compreende...claro, é uma belíssima revolução. E é barata? Uma revolução barata?! Não, senhores, esta é uma verdadeira revolução. Algunas vidas, alguns sacrifícios, alguns anos, algumas. É um bocado cara. Mas de boa qualidade, isso. E o rosto que se perdera, que possivelmente caíra do corpo e rolara debaixo das mesas, o rosto? Lembras-te? Como foi que ficou assim? Não sei: tinha uma luz. Sim, lembro-me: parecia uma flor que apodrecesse friamente. Era terrível. Boa noite. E ela trazia um vestido de seda branca, e nesse dia fazia dezoito anos, e estava queimada pelo sol, e era do signo da balança, e tomou os comprimidos todos, e acabou-se. Não compreendo. E julgas tu que eu compreendo? Quem pode compeender? Ela era a própia força, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical..., compreendes? Sim, sim. Tinha um vestido de seda, e era nova, e então acabou-se. Para diante, para diante. Não se deve parar. Enforquem-nos, a esses malditos banqueiros. Este vai ter trinta e cinco andares, será o mais alto da cidade. Por pouco tempo, julgo eu. Como? Sim, vão construir um com trinta e seis, ali à frente. Remodelemos o ensino. Cantemos aquela canção que fala da flor da tília. Bebamos um pouco. E outro, o que viu Deus quando ia para o emprego?! Isto, imagine, às 8 h. e 45 m. de uma tranquila manhã de Março. Uma partida de Deus? Boa piada. Não amará Deus essas maliciosas surpresas? Um pequeno Deus folgazão?! Ele ficou doido. Começou a gritar e a fugir. Que Deus vinha atrás dele. E depois? Bem, lá construíram o prédio com trinta e seis andares, e o outro ficou em segundo lugar. Isto é o trabalho do homem: pedra sobre pedra. É belo. Vamos amar isto? Vamos, é humano, é do homem. E então as crianças cresceram todas e andavam de um lado para o outro, e iam fazendo pela vida - como elas própias diziam. E então as condições sociais? Sim, melhoraram bastante. Mas uma delas começou a beber, e depois a coração estoirou, e ficou apenas para os outros uma memória incómoda. Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico, e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou. Era uma criança. Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebía pelo menos um litro de brandy por dia. Nada mau, para uma antiga criança. A verdade é que era uma criança, e não se aguentou quando o médico disse: aguente-se. E as ruas são tão tristes. Precisam de mais luz. Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz, e mesmo assim é triste. É até mais tristes que as outras. Estou tão triste. Vamos para férias, para o pequeno paraíso. Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia aguentar um copo na mão: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria. Era uma criatura excepcional. Depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele. E onde está? Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível. Partiu. E agora chove, e vamos para casa, e tomamos chá, e comemos aqueles bolos de que tu gostas tanto. E depois? Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se quebrassem entre os dedos. Foi-se embora.

H. Hélder

O ninho de Águia


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O NINHO DE ÁGUIA
Na tarde anterior dirigia-me ao momento, caía a noite. Uma contemplação profunda fazia-se em torno e o campo adormecia. Sobre as árvores, o céu côncavo tinha laivos rosa, como sorrisos de bocas que exalam o último adeus. Por entre os caules seculares dos azinhais e carvalheiras, uns acharoados de incêndio ardiam em apoteoses fúlgidas, sobre que os braços do arvoredo desenhavam em negro formas de estranhos esqueletos. Caíam a prumo, duma banda e outra, formas de granitos áridos, mostrando nos recôncavos e na profundeza lôbrega dos barrancos os primeiros fantasmas da noite, com os seus capuzes de sombra de derrubados na fronte, e um escorregamento de passadas misteriosas, como de ronda sinistra, que desemboca na quietidão de uma viela, no silêncio da noite velha. Ao centro do abismo a vereda serpenteava, corcovando a sua fita saibrenta entre aglomerações bruscas de basalto e grés vermelho, donde os matagais irrompiam como hirsutos cabelos de uma cabeça decepada. Sobre a vegetação agressiva dos espinheiros e zambujais uma linha de água corria, fazendo mergulhos tímidos de segredos trazidos de fraga em fraga – e essa queixa contínua e chorosa das gotas caindo manso acrescentava uma nota saliente à sinfonia em surdina dos vegetais adormecidos e dos ninhos em rumor. O montado começava dali a subir pelo irregular das colinas. Não podia enganar-me na marcha. Tinham-me dito – vais pela vereda, chegas ao cotovelo da rocha, à esquerda, sobes a encosta.
– É a última azinheira, tronco direito e vermelho, com a cortiça descascada. Leva corda para subires. Olhas para cima, aproximas-te sem fazer ruído, ouve – sem fazer ruído! dás com o ninho logo. Quando a noite se fecha, a águia chega, asas abertas, voo circular e gritinhos alegres de boa ménagère que volta com o dia ganho e um réptil no bico curvo, para os pequeninos esfomeados.
Decorar todo este itinerário, prometendo não esquecer a melhor cautela, iria devagarinho, muito devagarinho, sem chapéu, descalço mesmo, olhando para cima e em direitura à azinheira de tronco vermelho e nu de cortiça. Tinha então doze anos, era rubro e selvagem, de grenha fulva, dentes pequeninos e brancos, que eriçavam de gumes o meu riso escarlate e feroz – de korrigan vingativo. Achavam-no o orgulho de u rei e a pouca educação de um herdeiro presuntivo. Era de poucas palavras, vinham-me ao sol alegrias colossais que transbordavam de mim como o rufo de um tambor extravasa de caixa de ar; todos os meus músculos amplos e duros na contracção, contornados nas linhas altivas de um atleta imberbe, amavam luta e se tonificavam na carreira. Passaram até ali numa herdade, entre boiadas de que uma mansidão poderosa se abala glorificando a forca, a rabeira dos arados, plena liberdade montesa, onde o homem regula as pancadas do seu coração pelo ritmo tranquilo da grande natureza que desabrocha em evoés e hilariantes. Manhã nada, já eu estava a pé, sentado a banca da cozinha com os ganhões da herdade, diante da açorda patriarcal que o alho impregna de odores vermífugos. Vestia como eles a camisola de lã, o largo chapéu de borla e os grossos sapatos cardados, pião na algibeira, uma cicatriz transversal na testa, de pedradas antigas. Era imperioso e adorado; de resto abusava, dizia sempre – quero, porque quero! Quando eu dormia, minha mãe ia beijar-me, e de uma vez, acordando sob um desses beijos, que são como ninfas albas caídas no mármore de epidermes frias, voltei-me e disse enraivecido:
– Os homens não se beijam, apre!
Duma vez bateram-me. Enquanto eu berrava, o galo, cantando, fazia-se apoteose da postura recente de uma galinha amarela, que desposara. Fui-me a ele e torci-lhe o pescoço.
– Para não mangares comigo. Toma!
A eira, diante do monte da herdade, era um plano inclinado, dura e polida, sem ervas. Deitava-me no cimo e vinha rolando até baixo. Nunca conseguiam trazer-me limpo – que tinha um ódio insofrido pelos fatos novos e pelos peitos engomados, considerando a gravata um traste inútil, de que me servia para amarrar chocalhos ao pescoço das ovelhas. Só anos depois acreditei que o mundo que eu não conhecia, o outro, fazia dessa tira de seda uma fronteira perigosa – por muito infestada pelo contrabando.
Nessa dia, mal deram cinco horas e me apanhei fora da escola, deitei caminho ao montado. Tinha à cintura uma corda de linho com aselha, para subir à arvore, e no bolso uma navalha de podar com gume de fouce. Todas as precauções foram por mim empregadas. Ao dobrar da rocha, descalcei os sapatos e tirei o chapéu. Meti a navalha no peito e desenrolei da cintura a corda. Depois, resolutamente, dirigi-me à azinheira. Lá estava o ninho, era enorme e construído sobre três pernadas robustas – Como sobre os três dentes de uma forquilha. Eu nunca vira coisa igual, a falar sinceramente. Tinha o feitio oval de um berço e ficava tão alto, tão alto que fazia vertigens. Era preciso subir até lá. Atirei a laçada à primeira bifurcação do tronco, icei-me.
Depois, escarranchado na pernada mais sólida, joguei o laço às ramarias superiores e fui subindo. Á medida que me elevava, a ascensão entrava a dificultar-se; folhas em tufos compactos prendiam-me os cabelos, os ramos oscilavam sob o peso do meu corpo, e de quando em quando soavam estalidos ameaçadores. Mas via já bem o ninho de águia; Primeiro um alicerce de quatro ou cinco ramos de sobro, cruzados; depois um leito de folhas secas e pequenas hastes; sobre o leito folhas macias de trevos, de tamujes e fenos – e, forrando delicadamente o estojo, uma colcha de penugens brancas que a águia arrancava do peito, nos seus transportes de mãe. Com insano trabalho cheguei-lhe ao pé. Pulava-me o coração no peito, e qual não foi a minha alegria ao ver aconchegadas no ninho, uma de encontro à outra, adormecidas e tremendo de frio, duas aguiazinhas implumes, disformes ainda, mas de vigorosas proporções! Cerrara-se de todo a noite. Um claro luar com reflexos metálicos atravessava as vaporizações do arvoredo, penetrando-as de uma poeira de átomos cintilantes. Nas faias da ribeira, os rouxinóis faziam jogos florais arremessando-se os sonetos mais rítmicos; o veio cristalino dos regatos ia contando às folhagens húmidas dos balseiros e canaviais uma lenda antiga de fadas azuis e tesouros mouriscos, narrativa muito em segredo, ente murmúrios de beijos que ao longe mansamente se perdiam.
Dava trindades o sino da aldeia – e as aspirações pairavam naquele calado ar em que borboletas negras saltitavam, traçando sinais de mulheres predestinadas. A lua, na tela do céu esmaiado, lembrava, com as suas ranhuras, a mascara da comédia de uma ópera cómica, que a luz da ribalta ilumina. Ergui os olhos – acabava de ouvir um grito. Vi a águia pairar um momento por sobre a minha cabeça, de asas abertas, cujas rémiges em cutelo siflavam como velas de um moinho em actividade. Depois aquele vulto negro desceu perpendicularmente, raivoso da minha audácia e estendendo o bico de gumes curvos, para me ferir. Agarrado à corda dei um salto, abandonando o ninho, e fiquei suspenso na árvore um instante, a dez metros do chão pedregoso, batendo os dentes de terror. Que fazer? A corda por curta não chegava ao chão. Deixar-me cair era morrer. De repente, porém a enorme pernada dá um estalido seco, houve um atrito de folhas e lentamente vim baixando. Quando pousei no chão, com os dois filhos da águia no peito da camisola e a navalha nos dentes, senti um prazer sem limites. Tinha destruído um felicidade e praticado a façanha de subir à azinheira, sem outro auxílio mais do que uma pequena corda nodosa e fina. Levaria os implumes para a herdade e criá-los-ía com carne e sangue fresco de cordeiro. E eles cresceriam, alcançando as poderosas formas dos pais – bico adunco e córneo, a terrível garra contráctil, simetria elegante nas asas, que um jogo muscular movimenta com inexplicável destreza. E pertencer-me-íam, estariam na gaiola por minha vontade, comeriam se eu quisesse. esta ideia de ter alguém sob a minha obediência encheu-me de orgulho. Podia fazer mal sem ter medo das queixas que arrancasse. E vinham-me tendências para oprimir, para espicaçar, para expor à tortura. Também meu pai me batia! que sofressem! Na azinheira a águia ia de ramo em ramo, soltando, a cada investigação inútil, o seu grito melancólico. Corria as arvores próximas, voejava quase á flor do terreno, batendo com as asas dos tojais da selva, e indo em todos os sentidos como alucinada. Depois abriu as asas horizontalmente com um pulo, susteve-se nas penas como um pára-quedas, e com firmeza cortou o ar obliquamente subindo à região das nuvens. De quando em quando, na calada do campo morto, o seu grito de mãe roubada ouvia-se na escuridade, como o silvo de um barco em perigo que pede socorro.
A minha paixão daquela noite foram os filhos da águia.
Persistia na ideia de criá-los – de os fazer gente, dizia eu. Tinha os olhos quase fechados com uma orla amarela e a nictitante espessa, meio descida, o pescoço nu oferecia um desenho esguio, andavam de rojo, dando pequeninos gritos em busca da penugem quente da mãe. Meti-lhes à força miolos de pão pelo bico, que eles bolsaram escancarando a goela em carantonhas de graça infinita. Em seguida, servi-lhes água, mas recusavam tudo, os biltres e se os deixava um momento, punham-se a girar de cabeça alta, à procura do aconchego que não sentiam. Minha irmã, que, apesar do mistério em que eu envolvia as minhas operações, conseguira espreitar o que eu fazia, trouxe-me então a ideia de meter as aguiazinhas debaixo da galinha que na capoeira chocava os ovos que fora pondo.
Ela pensa que são já pintainhos, e as águias vão crescendo, crescendo... E dás-me a mais pequenina, sim?
– Dá!... uma figa.
Quando nos mandaram deitar ás oito horas, tudo estava feito – A galinha consentira em adoptar os dois órfãos e a coisa ia bem! Não pude dormir em toda a noite com a ideia nos pequenos. Se a galinha os picasse, e se os deixasse cair no cesto!... os gatos lançar-se-iam furiosos contra esses dois desamparados e devorá-los-iam, rosnando. – Aplicava o ouvido: se ouvisse chiar saltava logo da cama. Quanto tempo levariam a crescer? Um mês ou dois – estávamos a catorze. E contava pelos dedos – era tanto tempo ainda! Mandaria fazer um carro, que os filhos da águia puxariam. E com que inveja ficariam os rapazes da escola, vendo-me arrebatado pelos voláteis, como esses deuses que representava Manual Enciclopédico! No dia seguinte, ergui-me cedíssimo, havia estrelas ainda. E mesmo descalço fui, pé ante pé, até á capoeira, para investigar do que havia. Os moços, na eira faziam já girar os bois na retracagem dos calcadouros, e ouvia-se na altura o angelus vibrado pela cotovia. Acocorei-me devagarinho ao pé do cesto estendendo as duas mãos ao longo da palha.
A galinha dera sinal e, cheia de cólera, as penas alvoroçadas precipitou-se contra mim a bicada, implacavelmente, até me fazer sangue. Às apalpadelas percorria a cama de palha em que os ovos se aninhavam; achara apenas uma das aguiazinhas. Diabo!...
Então, sem medo já que dessem por mim corri a abrir a lucarna, e o dia entrou humedecido pela neblina cheirosa da manhã. Estava apenas uma águia, era certo!... Dei um berro de novilho marcado a ferro candente, que ressoou por toda a casa. Queria outra águia por força, por força, por força! Queria a, ao pontapé a tudo, ébrio de uma raiva sanguínea. E num formidável choro rolava-me pelo ladrilho todo nu. Todo o meu grande desejo era que me atendessem e viessem todos, surpreendidos, saber o que havia. A voz de minha mãe chamava pelas criadas; entrei a sentir nos quartos ruídos bruscos que se arrastavam e saias que se enfiavam à pressa. Já gritava menos, conseguira o meu fim, tinha incomodado e metido susto a todos de casa.
metido susto a todos de casa. Era bastante! Agora, iriam todos procurar a minha águia, haviam de ma encontrar por força, ou arranjar-me outra novazinha em folha, como aquela. Apre!
Quando de repente me chegou o grito da mãe roubada, grito brusco e quase surdo, como se o coasse uma laringe extinta. Toda a noite o ouviria, ora perto ou distante, sempre com uma nota de ira impotente e suplicação desprezada, na tenebrosa calada do matagal. Fui para a lucarna, instintivamente atraído, à escuta.
Era um grito intermitente, primeiro muito fraco e repetido, como de alguém a gemer – gri! gri! gri! – após, subitamente, essa voz dilatava-se, enrouquecida, fazendo quase um bramido. Uma mulher não expressaria melhor a angústia, o desespero e a morte. Corava o oriente como uma epiderme sadia traduzindo a comoção dum beijo; nas moradas dos ninhos, entre decorações de folhagem e carícias de poética doçura, as famílias de pássaros de melros, de pintassilgos, rolas, rolas e poupas, chilreavam felizes e singelas, deslumbradas na irradiação do céu.
Só ela, a águia, ia chamando embalde pelos seus, através da vastidão do éter, em que a vibração luminosa ondulava, e apunhalada no seu único amor como essas cruéis imperatrizes que Deus castiga no único ponto vulnerável da sua alma.
Com os olhos alongados, via-se rastejar à flor do solo, pelas chapadas e penhascos, extenuada e rouca, despregando as asas oblíquas, de enormes rémiges em cutelo, como tectos de lares despovoados pela assolação da morte.
– Coitadinha! – dizia eu comovido. – Coitadinha!...
Então fiquei entorpecido num constrangimento profundo e singular, que nunca tinha experimentado. Sentia na goela o embaraço inexprimível que é nas crianças o prólogo do choro soluçante e inconsolável, sob que a alma germina em bons impulsos e leais dedicações, como na terra se abrem as flores primaveris, sob o influxo das primeiras chuvas.
Antes que viessem surpreender-me corri a vestir-me, e resoluto, os olhos cheios de lágrimas e a corda à cintura, voltei a buscar depois a aguiazinha. Minha irmã chamou-me, soluçava.
– Olha, morreu!... – disse-me toda aflita, mostrando-me o cadáver da outra águia, que, durante a noite, com mil precauções, tinha ido roubar ao cesto.
Por isso achei falta – gritei colérico, batendo o pé. E aos urros, crescendo contra ela de punhos cerrados, dizia-lhe golfando impropérios:
– Maldita! Má! Peste! Nosso Senhor há-de castigar-te, deixa estar.
Ai de mim! Na capoeira, a galinha raivosa, reconhecendo o outro enjeitado à luz da manhã, acabava de o matar à bicada, lançando-o fora do cesto.
Então desatei a chorar. Nunca fora tão desgraçado, nunca!...Nem quando me davam açoites com o chinelo, o que estava debaixo da cama de meu pai, a rir-se de mim pelo buraco ignóbil da tomba. E agora, que fazer?
Meti no seio da camisola os dois enjeitadinhos mortos, e a correr atravessei a eira, sem dar bons-dias a ninguém. O dia começava. Rasgando as escuridões em que se envolveria, o panorama saía das nebrinas dissipadas a golpes de sol aqui e além, nas cristas dos outeiros. Desci a correr a ladeira do monte, pendores suaves donde o olhar abrangia, para todos os dados, perspectiva do mais belo matriz, montados, restolhos de searas, regatos orlados de choupos e faias, mais para além, hortejos alegres onde chiavam noras e se espiralava o fumo dos casais, vinhedos sem fim bordando sinuosidades bucólicas, brancas ermidas pousadas nas montanhas, e perdendo-se na serenidade esfumosa do horizonte, povoações que na luz iam fazendo mais e mais nítidos os seus delineamentos. A paisagem tinha agora uma nitidez de gravura. As aldeias sorriam para o noivado da natureza em festa, enquanto, duma banda e outra, grandes massas de arvoredo abriam destaques surpreendentes.
Iam tranquilamente pelos terrenos ceifados os carneiros dos rebanhos, alongando o pescoço, a fofa corpulência tufada da lã patente em camas de espiraizinhas miúdas.
Alguns velhos guias experientes e graves, focinho erguido, a grossa cornadura em anéis de diâmetros crescentes, enrolada como o arrepio da cabeleira de um dandy, chocalho pendente por correias de couro cru, a orelha inquieta, olhavam vivamente o largo, bebendo os sons e procurando-lhes a origem solícitos, como quem tem sobre si a responsabilidade da tribo e o futuro dos pequeninos. Acima da redondeza das ancas de alguns, cabritinhos fulvos, de grandes orelhas horizontais, uma meiguice cândida na vista, erguiam-se a prumo furando caminho, as maxilas entreabertas, por onde se escapa um queixume tenuíssimo – me! me! – alguma coisa como os rudimentos da cartilha do rebanho. Vários preguiçosos, estacados a meio da corrente, mergulhavam o focinho na água, bebendo. Poucos tinham já passado e cortavam a dente as gramíneas alastradas nas barranceiras. O velho cão descansa, numa postura séria de patriarca, enquanto nas meias-tintas dos planos secundários, o pastor, de manta ao ombro e polainas encarquilhando na tomba dos sapatos cardados, tinha o seu ar pasmado de montanhês, olhando a catarata de ouro fundido que o sol jorrava do nascente, numa apoteose de cáusticas vivas – olhar em que se estagnava a silenciosa doçura dos olivais cinzentos e se reflectia a concepção panteísta de um Deus amantíssimo, que fecunda os trigos das searas, preside às crias e vem de noite, mansamente, com o seu capuz de estrelas derrubado para diante, lançar a benção ao gado que dorme, inoculando no sonho do pastor o esmalte de um sorriso de ceifeira, vermelha como as cerejas húmidas de Junho.
Correndo através do montado, cheguei à ribeira, que pude saltar num pulo de lobo, e, sem me deter, entrei a trepar a pedregosa encosta, na direitura do ninho. Faziam-se ali acumulações selváticas de tojeiros e silvados, cabeças de rochedos pardacentos, espinhais de luxuriante amplitude, que tolhiam o passo a quem ia. E aquele recanto, plutónico e brusco, desenhava-se numa como penumbra de floresta, que de cima caía filtrada pelos amontoados da folhagem. Deixara de ouvir a águia, e era pungente o sossego daquela região, equiparado ao orfeão gigantesco de voláteis, que na planície entoava o poema sinfónico da manhã. Por duas ou três vezes ergui a voz para insuflar a vida nos ecos do desfiladeiro. De rocha em rocha, quando muito, o eco repetia a última sílaba, num murmúrio tímido, como rezado à roda de um féretro, e morria.
Pela montanha, troncos penitentes e negros orando de braços abertos. Nos pegos da ribeira, as reticulações verde negras dos limos deixando evolar a putrilagem das febres más. Silêncio abrasado, pesando.
Quando cheguei ao ninho, arquejava. E, antes de erguer a vista sobre ele, detive-me um instante, olhando à roda com um terror sombrio, que o remorso envenenava. Se a águia desse comigo podia matar-me à bicada. E teria razão – ai de mim!
Estava sozinho. Não se via dali o monte já. De repente, casualmente, sem mesmo querer, dei como a águia, que, de cima do ninho, abria as asas e sobre mim estendia o seu pescoço ávido. Fiquei tremendo ante a raiva silenciosa que paralisava a terrível rainha. Ela ia decerto formar voo e cair sobre mim, para delacerar-me com as suas garras de três gumes implacáveis de uma vingança cruel.
Olhámo-nos por tempo. As asas da águia abriram os seus leques enormes de varetas curvas. A imobilização porém continuava e o pescoço permanecia caído à borda do ninho. Veio-me a ideia de que podia estar morta. Atirei-lhe com uma pedra – a mesma indiferença.
Sem querer saber de mais, desenrolei a corda e atirei-a à primeira pernada da árvore. Quando atingi a altura do ninho, pude olhar bem de perto a águia agonizante, que um frémito vago percorria. Era poderosa e magnífica, de enormes asas pardacentas, cujas fortes rémiges se aguçavam como punhais, na ponta. Estava de bruços sobre o ninho, como se quisera aquecer o peito de encontro aos frouxéis alvinitentes em que os filhinhos tinham visto a primeira luz. A cabeça um pouco chata descaía adiante num bico de bordos dentados, e sobre a íris de oiro a nictitante ia descaindo na sombra da agonia, como um apagador sobre a luz do círio pascal.
A águia morreu nesse dia, à mesma hora em que as outras aves voltavam cantando aos ninhos, para dormir com a prole. Por muito tempo, cruzando o montado atrás dos rebanhos de meu pai, pude ver nos cimos da azinheira gigante, suspenso, o berço-túmulo, a que o esqueleto da águia fazia guarda, dia e noite, de asas estendidas, branquejando na sombria folhagem da árvore. E vinham-me então remorsos, que fora eu o assassino daquela dinastia real!
Vai completar-se um ano que a tua filha desceu à cova, ó minha mãe! E, vendo-te curvada no teu luto, pobre mulher envelhecida de lágrimas, sublime por toda uma vida de abnegação sem exemplo, para mim fico pensado que deve ser cruel o Deus que tu adoras, se nunca teve remorsos de haver roubado também. – o Ninho de Águia.

F. Almeida

idolatria e fé


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"Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o Demónio a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade, que o mesmo demónio com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão, pergunto: Quem foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas antes com aplauso, a adoração do Demónio? Quem fez que fosse tão frequentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos? O de Júpiter em Babilónia? O de Juno em Cartago? O de Vénus no Egito? O de Dafne em Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O de Hércules em Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa opinião dos oráculos com que o Demónio respondia naquelas estátuas, foram os que todo este culto lhe granjearam, sendo certo que, se Deus, vindo ao Mundo, não emudecera (como emudeceu) os oráculos da Gentilidade, grande parte do que hoje é fé, fora ainda idolatria. Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus, só porque Deus fizera própria da divindade esta ciência: antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria."

Pe. A. Vieira

segunda-feira, março 07, 2005

Lisboa


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A luz vinha devagar
Através do firmamento...
Vinha e ficava no ar,
Parada por um momento,
A ver a terra passar
No seu térreo movimento.
Depois caía em toalha
Sobre as dobras da cidade;
Caía sobre a mortalha
De ambições e de poalha,
Quase com brutalidade.
O rio, ao lado, corria
A querer fugir do abraço;
Numa vela que se abria,
E onde um sorriso batia,
O mar já era um regaço.
Mas a luz podia mais
Voava mais do que a vela;
E o Tejo e os areais
Tingiam-se dos sinais
De uma doença amarela.
Ardia em brasa o Castelo,
Tinha febre o casario;
Cada vez mais nosso e belo,
O profeta do Restelo
Punha as sombras num navio...
Nas casas da Mouraria,
Doirada, a prostituição
Era só melancolia;
Só longínqua nostalgia
De amor e navegação.
Os heróis verdes da História
Tinham tons de humanidade;
No bronze da sua glória
Avivava-se a memória
Do preço da eternidade.
Nas ruas e avenidas,
Enluaradas de espanto,
Penavam, passavam vidas,
Mas espectrais, diluídas
Na cor maciça do encanto.
E a carne das cantarias,
Branca já de seu condão,
Desmaiava em anemias
De marítimas orgias
De um fado de perdição

M. Torga